22.12.09

Natal - parte 1

É engraçado como não temos controle sobre nossas vidas. Como as coisas podem tão facilmente escapar das nossas mãos; tão rapidamente que nos desconcertam e nos tornam a realidade desinteressante. É engraçado como essa gota se demora para juntar-se ao resto do copo, como se ela realmente não quisesse chegar lá. Interessantes mesmo são essas cores, caramelo, vermelho, sei lá... estou sem paciência para defini-las... apenas saboreá-las... mais um gole... ah! Como uma faca rasgando o corpo... toda a dor que quero agora, é essa dor que me faz melhor, me torna mais justo... sofrer... embalsamar um corpo vivo. A porta bate. Os passos agudos se aproximam do corpo largado à poltrona, de frente à janela. Eles param. Não quero me virar... pra quê? Sei de quem são... sei que ultimamente não me trazem boas notícias, mas eles insistem em falar comigo:

- Marcos...

Só um movimento do copo como resposta. E nem mais à boca consigo consigo levá-lo.

- ...o delegado me ligou hoje... pode ser uma pista... não sei, na verdade, mas quero acreditar...

Essa última frase deve ter sido acompanhada de uma lágrima, com certeza. Pessoas chorando me fazem chorar, mas já gastei todas as minha lágrimas... por essa e outras vidas... tomara que não existam outras vidas... uma já basta, não aguento mais.

- Você não vai fazer nada? - sim, com certeza há lágrimas - Você não pode continuar assim, Marcos... Uma longa pausa me separa dos passos, que por um momento tentam se aproximar, mas desistem não muito longe do início. Ah, como queira que eles viessem até mim e me abraçassem... queria sentir um pouco de calor! Meu corpo já está frio! É esse vento estúpido dessa estúpida janela... como se ela fosse aparecer, como se ela fosse olhar pra mim... como se ela me amasse... não há mais sentido nessa janela se não eu me terminar nela. Ah, minhas pernas já não se movem há tempos... por um momento é bom sentir o sangue correndo por elas e os músculos vibrando... um pouco de trabalho, mesmo que levantar o corpo de uma poltrona já dignifica o homem... mas não suficiente. Ha! o que pode, verdadeiramente, ser suficiente?

Os passos já estavam voltando à porta quando pararam ao o ouvir levantar. Repousou o copo no parapeito e em seguida debruçou na janela aberta. O vento dissipava o bafo de álcool no ar e os pensamentos do médico bêbado. As pessoas parecem tão pequenas, vistas da cobertura do prédio, tão distantes... e se curei uma daquelas pessoas? Tantas passando aqui por baixo e tantas cirurgias feitas, certamente uma delas está ali aos pés do prédio... mas São Paulo é grande... talvez não tenha curado nenhuma delas, talvez nem parentes delas, ou ainda conhecidas... São Paulo é grande, muita gente... ela pode estar em qualquer lugar.

- Marcos? Um tom de esperança saía de sua voz, na expectativa que ele virasse não só a cara, mas o rumo de sua vida. Estava enganada. O chão ficou mais atraente. As cores se misturavam às pessoas. A alma já estava de pé no parapeito, bastava apenas o corpo segui-la. Os olhos cercaram a rua, buscando uma última coisa que pudesse detê-lo... mas a dor era grande demais.

- Marcos?! Acho que ela já adivinhou a minha pretensão. O que tenho que fazer, farei depressa, antes que pense melhor... antes que ela me pare, antes que eu volte a querer viver. Ah, porque a perna tem estar tão pesada assim? Ai! Joelho no parapeito... Como estará a cara dela? Tomara que ela não esteja vendo. Renata...não merece isso. Mas assim é melhor, assim... o quê?

- Marcos! Ela queria correr e pará-lo, mas por um momento o nojo que sentiu um dia por aquele homem lhe veio a mente, no entanto, foi seu marido, o amou antes na vida, tiveram uma filha... ah, por que isso foi acontecer? Não há quem mereça isso, não há! Eu cuidei dela como pude, eu a amava com a minha vida! Talvez o trabalho atrapalhasse um pouco... mas cuidava mesmo assim! E quando não estava, tinha a empregada! Minha irmã, às vezes, também ajudava... Atenção não faltava; eu sabia das notas dela... por sinal, não consegui falar com ela sobre a nota de Português... ela sempre foi bem, mas tirou uma nota ínfima... por quê? Por que não consegui falar com ela? Ela estava distante... saía com frequência, dificilmente sabia onde ela estava, como conseguiria conversar com ela? Os horários também não ajudavam muito... principalmente as horas de sábado... talvez, se não trabalhasse de sábado podia ter conversado com ela, tomado um café-da-manhã que seja... imagina se todo sábado de manhã eu a levar para o Ibirapuera, podemos correr juntas!... Podíamos... o quê? Marcos! Não!

A figura diante dos seus olhos o fez parar. A sua posição era claramente desconfortável (confortável seria já estar deitado junto à calçada, sem dor), mas existem coisas que nos fazem parar... tremer... não ter mais controle sobre os próprios membros...O que é que vira? Sei que meus olhos devem estar um pouco turvos, por causa da bebida, mas a imagem foi bem clara, apenas não conseguia mais encontrá-la no meio da multidão... seria um anjo? Ela me lembra algo... alguém... seus traços, o jeito de andar, de olhar... pra mim... A perna perdeu força e antes mesmo de conseguir subir na janela, caiu para trás. Seus olhos fitavam os céus, o único lugar ao qual se poderia olhar... A imagem era processada na mente e tomava cada vez mais forma definida. Seu corpo, suas roupas, seus olhos, seu rosto:

- Sofia!

Renata, que fizera a pouco os primeiros movimentos em direção ao ex-marido parou ao som do nome proferido. Uma brasa cada vez mais fumegante ardia em seu peito. Por que proferiria aquele nome tão evitado nos últimos dois meses justamente naquelas circunstâncias. O rosto enfim virou, revelando uma vasta barba que não devia ser feita há semanas, mas os olhos tinham um brilho que não se via desde... não me lembro...
O encontro de olhares acalmou as emoções da mãe aflita, que olhava com espanto e curiosidade o homem sentado no chão à sua frente. Pelo tanto que o conhecia - 18 anos vivendo juntos não podem ser desconsiderados - sabia que aquele olhar trazia algo diferente, que não estava presente fazia tempos... esperança.

- Sofia... Assim que as palavras saíram de sua boca, levantou-se da melhor maneira que pode. Desequilibrou-se, mas rapidamente apoiou as mãos na poltrona, impulsionando-o novamente rumo à porta. Passou por Renata, atônita, e saiu pelo corredor. Não se lembrava da última vez que sentiu o frio do piso do corredor - e foi quando descobriu que estava descalço, mas isso não importava - e demorou alguns milésimos a mais para lembrar para que lado ficava a escada... ou o elevador... não, a escada; odeio esperar elevadores. A mão tateando a parede ajudava o corpo curvado a se deslocar até o corrimão da longa escada. Os pés desciam compassadamente e impressionou-se da precisão que apresentavam. Só depois do terceiro lance de escadas que lembrou morar num prédio com quinze, não, dezesseis andares - sendo que seu apartamento se encontrava no último. O fôlego já não permitia descer mais degraus, e por um momento pensou em simplesmente deixar seu corpo descer escada a baixo, aproveitando a gloriosa lei da gravidade e a inércia do seu corpo, já pesado pela inatividade. Seu dedo procurou o botão do elevador... qual era, não sei... acho que o de baixo... droga! Apertei o de cima, raios de botão! Agora sim... agora... Ah, Renata descendo... não queria que ela me visse nesse estado... no estado que estou já não sei há quanto tempo... e que estou fazendo com esse casaco marrom?! Não combina nada com essa calça preta!... Renata... Sofia! O elevador!
Quando Renata terminou de descer o mesmo tanto de degraus que Marcos, já não o via. Via apenas as luzes indicadoras do elevador passeando para a esquerda. Tinha que saber o que ele estava aprontando. Continuou a descer as escadas com resistência supreendente para uma mulher já de meia-idade, mas não tão surpreendente quando se trata de uma mãe à procura da filha.
A descida repentina deu-lhe tontura e tentava apressar os números descrescendo no display do elevador sem sucesso. Apoiou o corpo no espelho às suas costas e procurou refúgio aos olhos no teto, mas o desconforto de ser quem era não saía de seu corpo e contentava-se apenas na figura de sua filha... será ter sido uma ilusão? Agora que o pensamento cruzou sua mente, sentiu calafrios de medo... E se nada mudasse? Tudo voltasse a mesma droga de sempre? Eu, aqui, em trapos, sem trabalho, família... sem aonde saber procurar por uma razão de vida... Se o que dizem é verdade, se a esperança é a última que morre... acho que já morri faz tempo.
O alerta do elevador de que já estava no andar térreo o tirou de sua dispersão, conduzindo, trôpego, às portas de vidro que levavam ao pequeno lance de escadas... à calçada... rua... filha... ela estava do outro lado. Não deu grande atenção às buzinas que o advertiam de sua loucura. Ao chegar do outro lado, vasculhou todos os lugares, pessoas e olhares que sua visão distorcida alcançava. A cada segundo que não obtinha o resultado que tanto esperava, o desespero crescia exponencialmente. O ar faltava aos pulmões e já não sabia para que direção olhava, apenas girava em círculos em meio à multidão apressada. E seu olhar finalmente parou ao reencontrar o de sua ex-mulher, que o fitava ao longe, do outro lado da rua, com o queixo estremecendo e os olhos baixando. Todas as forças que restavam a ele se esvaíram naquele mesmo instante, concentrando-se apenas nas suas lágrimas, no seu pranto alto e patético. Deixou seu corpo cair, como queria ter feito lá de cima, mas a única coisa que lhe aconteceu foi esbarrar com um jovem que, até então, estava desconectado do mundo, envolto pela sua música alta, de olhos baixos e chiclete sendo mascado automaticamente por movimentos contínuos que, por sinal, regiam todo o seu corpo, até sua mente. Os fones caíram de seu ouvido e a mochila de seu ombro. Sua mão tocou o chão; os seus tecidos, que clamavam por algum contato físico verdadeiro, satisfizeram-se ao serem rasgados pelo asfalto: meras células... serão recompostas. O que mais lhe incomodou, no entanto, foi deparar-se com a humanidade que já não tinha, com o choro de um bêbado.

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