24.12.09

Natal - parte 2

Acordou naquela manhã sem o despertador. Na verdade, quase não dormiu, mas procurou ver o lado positivo da situação e logo se pôs em pé, ignorando o espaço vazio ao seu lado na cama. Gostava de se sentir bem e se arrumar a fazia assim se sentir, então fez sua primeira parada do dia no banheiro. Escova de dente, pente, perfumes e outros mais, esteticamente organizados ao lado da pia, eram selecionados um a um pela mão delicada que fazia o melhor uso de cada um deles. A segunda parada foi no guardarroupas. Queria ser casual hoje, para isso não quero usar vestidos... ainda mais que as cores que tenho não combinam com esse dia. Uma calça jeans, sim... mas minha favorita está para lavar... Esta tem uma bela cor, mas não fica tão bem em mim quanto a outra... mas tudo bem, hoje quero cores, mesmo.
No mesmo ritmo escolheu a blusinha que acompanharia o resto do traje, saindo contente de dentro da porta branca que abrigava seu prazeres de cada manhã. Ah, a música! Esqueceu de escolher a música matutina! Vamos lá... devia baixar mais músicas, tentar novidades... ou quem sabe umas mais velhas... ah! Mas é claro! Como podia ter esquecido? É bom já colocar as músicas do coral, assim já me acalmo mais... Música do coral, então!
Por um momento, sentiu vontade de trabalhar, mas não podia. Trabalhar em feriado é desespero... Trabalhar a fazia bem, dava a ela um objetivo a cada dia, uma meta a ser alcançada. Facilmente se destacou no escritório, não só por sua beleza, mas pela determinação que demonstrava todos os dias, como se a empresa fosse realmente sua, como se fosse a sua razão existencial, mas não era... certo? Bem, gosto muito de me manter ocupada, de me sentir útil no trabalho, mas isso não me torna uma viciada... quero dizer, tenho outras coisas que me dão prazer, que me alegram, como... filmes! Sim, odeio ficar parada em casa à toa e um filme sempre preenche minhas noites... ah, e quando tiro uma noite para assistir a um filme, comendo calda de chocolate... hum, mas faz tempo que não faço isso... e se... não, hoje à noite não dá, é verdade... olha outra coisa que me agrada: o coral! Cantar é um dos meus maiores prazeres, certamente... adoro o frio na barriga das apresentações em público, me traz uma sensação de aventura! E o ambiente do coral da igreja também é ótimo... não sou muito íntima de ninguém, mas adoro conversar com as amigas... nossa... tenho poucas amigas... não me lembro de alguma que não seja do coral... por que não há mais mulheres no escritório?! Será que poucas mulheres gostam de contabilidade ou meu chefe é simplesmente machista? Ele é um cara legal... não é muito bonito, mas percebo que ele me olha de vez em quando... quem sabe... Céus! Ele é casado, Júlia! O que você estava pensando?... Por que... Por que ainda estou sozinha?... Pare de pensar nessas coisas, mulher!... E é bom mesmo que você esteja sozinha, veja sua irmã no que se meteu depois de tantos anos casada... Ah, me perdoe, me perdoe... não podia pensar uma coisa dessas...
O momento do café da manhã não a agradou como esperava e desistiu das fibras com iorgute. Desligou o som da música tradicional de igrejas na época de Natal e resolveu sair de seu apartamento, passear por algum lugar, fazer seu tempo passar... Não gostava de ociosidade, fazia-a pensar, e quando muito pensava, sempre algo ruim lhe aparecia em mente. Para que não corresse o risco, desceu as escadas cantando as músicas que tanto ensaiara, deu bom dia ao porteiro e andou rumo à... rumo à floricultura! Adoro flores durante a manhã... Cinco minutos de caminhada e... fechada. Bem, quem sabe uma simples caminhada não alegre meu dia.

***

Não sabia se era tarde, manhã ou noite. Manhã não deve ser. As luzes que transbordavam da cortina vermelha muitas vezes enganavam e ficara muito tempo no quarto. Um vento resolveu bater e revelar o começo da tarde, resvalando nas suas pernas nuas. Resolveu cobrir-se novamente, assim também se sentia mais segura, menos desvelada. Sentia-se suja e não queria que ninguém visse quão suja estava... por dentro. Nem mesmo Eric. Valia tanto a pena fazer tudo o que fez? Na hora as coisas parecem ser tão claras e óbvias, mas aqui... pensando... não faz tanto sentido assim. Seus olhos bateram na cômoda ao lado da cama e foi como se levasse um golpe na cabeça. Os restos de ontem ainda se encontravam lá, ao lado da vodka barata, e só de vê-los sentia-se cansada. Ao mesmo tempo, uma intensa dor, como uma saudade ruim, subiu pelo seu estômago, dando-lhe ânsia e vontade... não uma vontade certa, porque acho que no fundo não quero mais... mas por que me atrai tanto? Odeio ficar indisposta! É uma das que mais odeio! E isso sempre me deixa assim... a dor de cabeça também me atrapalha e o cheiro é horrível...
Por um momento, uma lágrima ensaiou cair pelas olheiras e sentiu-se fraca... e também forte... por um único momento, queria se rebelar como outrora fizera, mesmo que o tenha feito anteriormente para alcançar tudo o que tem agora. Tudo? Pensar no seu passado dava-lhe ainda mais dores de cabeça e esticou o braço para sanar todas as suas angústias. Era muito pouco em relação a ontem, mas era o suficiente para a manhã. Seu peito respirou intensamente e suas dores acalmaram, deixando-a em paz por mais alguns minutos. A preguiça invadiu-lhe o corpo, carregando junto o remorso. Sabia que estava errada, mas não se importava mais. Estava errada a tanto tempo que não fazia mais diferença... Era errada.
Não se sabe quanto tempo passou, mas o cérebro jazia morto enquanto os olhos sonolentos fixavam o carpete tosco. A boca estava aberta, pensou em fechá-la, mas não se importava mais. Nem sequer retirou do rosto a mão culpada. Assustou-se com o mover da porta e quando reparou em quem entrava ficou ainda mais emburrada: Eric.

- Ei gata...

Nenhuma resposta. Sentiu-se mais parecida com o seu pai.

- Tenho que ver uns negócios... tomar conta, sabe... vou voltar mais tarde, viu? Enquanto falava, vestia-se com a roupa de vários dias. Falava com a autoconfiança de sempre, a mesma que a conquistou... e que mais lhe dava raiva no momento. Era tão falsa! Achava-se tão superior aos outros, mas seu nojento bafo revelava apenas o começo da podridão de seu corpo.

- ...e daí a gente vai comemorar, gata! Vem cá, me dá um beijo... vem... um beijo! Eu quero um beijo... gata. Os dentes cerrados revelavam a ameaça. Virou-se e satisfez seu desejo. A sua mão podre a tocava e sentia nojo de si mesma. Não olhou no seus olhos uma única vez. Saiu, enfim... paz? Não... paz era algo que não experimentava há muito tempo... já faz uns bons meses... não podia ser tão ruim antes a ponto de preferir viver assim... ah! Mas ele era ridículo! Não conseguia falar uma palavra com aquele idiota! Como ele consegue me irritar tanto! Tenho tanto o que falar para aquele... aquele...

Depois de alguns minutos de silêncio, chegou à conclusão que tanto evitara por esses longos dois meses: sentia saudades... queria vê-los de novo. Fez um primeiro movimento: sentou na cama. Esperou um pouco e vasculhou com os olhos o quarto bagunçado e pouco iluminado, à procura de sua calça. Não achou. Mais alguns minutos e estava fora da cama. Sentou-se de novo, pensando se era de fato uma boa ideia. Afinal, o que falariam? Um grande medo a assaltou e trouxe as lágrimas que ficaram por tanto tempo presas no corpo frágil e magro. Tantas coisas passaram por sua cabeça que não conseguiu pensar em nenhuma delas, assim como quando se mistura todas as cores e forma-se o branco. Muitos minutos esperaram por ela, para que se recomposse. Decidiu: ia apenas vê-los, mas nunca falar com eles, não suportaria a vergonha. Foi achar sua calça na sala. Calçou o all star preto e o casaco que pegara de última hora quando fugiu de casa - era de seu pai, marrom, sua cor preferida, por mais que seja a cor mais ridícula para se preferir.
O apartamento do pai era mais perto, passaria depois na casa da mãe. Não sabia como ou se iria vê-los, iria apenas tentar. Andou de cabeça baixa e fazia tantos dias que não passava por aquelas calçadas que o cenário mais parecia um extenso dejá vue. Por todo o trajeto caminhava abraçada em si mesma, como se todo o mundo à sua volta estivesse pronto para julgá-la e a única coisa que pudesse protegê-la fosse seus próprios braços franzinos. Seu coração palpitou ao reconhecer as marcas na calçada: estava próxima. Os pés das pessoas passando a distraiam. Há pouco tempo, eram em sua maioria calçados populares, mas agora os sapatos executivos tornavam-se mais frequentes. Riu minimamente em seu interior ao ver um outro all star, mas este vermelho. Se houvesse uma jeito de escolher uma coisa que pudesse levar do seu quarto nesse exato momento, seria, definitivamente, seu all star vermelho. Calçou o preto não sabe por que e se arrependeu amargamente por isso.
Seus passos pararam de seguir o ritmo dos outros à sua volta e desaceleraram. Contou até dez e levantou o rosto. Em seguida virou-o à direita, na direção do prédio azul e branco do outro lado da calçada. Subiu os andares com o olhar até chegar no último e... nada. Uma parte dela sentiu-se aliviada, como se justificasse todos os seus atos. Mas não conseguia reunir forças suficientes para sair dali. As pessoas continuavam cada qual o seu caminho e o corpo da menina ainda menor de dezoito parecia buscar em cada uma delas um incentivo para deslocar-se. Sabia que bastava um passo e sairia dali rapidamente, mas algo a retinha, fazendo-a permanecer imóvel. Fechou os olhos e convenceu sua mente: uma última olhada e sairia. Seus olhos se abriram e buscaram a janela da cobertura com convicção. Sairia daquela calçada em instantes! Mas... pai? o que que ele... está subindo? Não! Assim que seus olhos se encontraram com os de seu pai, apoiado na temida janela, correu como há tempos não corria, finalmente encontrando o incentivo que tanto esperava para seus pés.

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