19.12.10

De estar só

Nada pinta mais o rosto,
Nem seca esse molhado,
Ou refaz aquela dor
Dum peito enjaulado

Um espaço vago se vê
Nem música, arte ou sonhos
Invadem aquilo que falta
Sem os tais sorrisos bobos

Ah! E então?
Quem dera soubesse
o remédio da solidão

3.12.10

Como um trem

Que roda e range sem parar,
Olhando o céu, sobre o mar,
Cruza o verde tocado por pássaros,

Alaranjado e constante
Na música sua de máquina,
Quente no ventre negro e sólido,

Paredes que não se contém
O coração salta sem vez
Os trilhos titubeiam e fogem de lugar,

Não quero pensar
Só quero passar
Não quero pensar
Só quero passar

O grito surdo é atendido
Na encruzilhada, diverge
Compreende a escolha solitária

Seu raciocínio muda do vício
Olhos tentar recuar
Por saudades do ar

Estabelece errados os passos,
E a dor no coração
Faz a terra tremer

Um longo e sonoro gemido é ouvido
Os giros contrários:
Rubros em fúria

E agora? E agora? E agora?
E agora? E agora?
E agora?

Há sempre um novo caminho
Uma rua justa, bela e robusta
Onde vão em paz tuas rodas

24.11.10

sobre Asia Bibi

Há cerca de um ano e meio, uma mulher resolveu matar a sede de seus cinco filhos, dela e de seu marido no Paquistão. Providenciou água vinda do poço da vila onde morava, encheu o jarro normalmente usado para esse fim, que fica sempre ali ao lado e, sem saber, sentenciou-se à morte. Vista por outras mulheres da vila, foi acusada de profanar o jarro de uso comum pois era cristã num país muçulmano. Tais mulheres foram ao clérigo da região e acusaram Asia Bibi de blasfêmia ao profeta Maomé, crime passivo de pena de morte no país - que, por sinal, não necessita de testemunhas que confirmem o fato. Asia Bibi passou mais de um ano presa, sem saber se sua vida seria ou não tirada no dia seguinte.
Ela não foi a unica vítima - nem a última - a ser condenada à morte por razões religiosas. Tivemos recentemente no Irã o caso de Sakineh, que recebeu pena de morte por adultério, sendo que seu marido já se encontrava morto. O problema se deu pois culturalmente no país uma mulher não deixa de estar casada por ser viúva. E traição conjugal resulta em morte por apedrejamento (prática encontrada inclusive na Torá judaica e também no Antigo Testamento cristão).
Situações assim causam espanto na nossa cultura ocidental, que supostamente são construídas sobre a base dos direitos iguais a todos os humanos, não obstante sua classe, raça ou credo. Facilmente somos impelidos a nos indagar "como podem fazer decisões tão cruéis assim por tão pouca coisa?". Alguns mais radicais sugerem ações mais assertivas de seus governos a fim de estabelecer a verdadeira paz no mundo e findar a tirania. Mal percebemos e já estamos invadindo um novo Iraque.
Eu acredito no estatuto dos direitos humanos e sinto indignação diante de ocasiões como as citadas, afinal, como cristão, prezo pelo amor, respeito e vida, a partir das quais rejeito a possibilidade de julgar uma outra pessoa por seus erros, sabendo que também cometo meus próprios pecados, muitas vezes piores. Os julgamentos de Asia e Sakineh para mim transpiram injustiça, mas será que com isso ganho o direito de impor a minha própria justiça? Se acreditamos que as pessoas são intocáveis em suas escolhas - ou seja, que não podemos discutir seus gostos ou suas concepções de certo e errado -, não podemos isentar países como Paquistão e Irã dos mesmos direitos.
Mas então me diriam "é diferente! O certo ou errado das pessoas de meu país não ferem a ninguém, uma vez que não ferem nossa lei. Lá?! Lá sim, a lei é injusta e deixa passar marcas, mortes e rusgas!". Quanta inocência um pensamento assim. Só mostra como não conseguimos enxergar além de nossa própria cultura, como é quase impossível tirar os óculos com quais estamos desde pequenos. Não culpo ninguém por isso - eu mesmo tenho essa extrema dificuldade -, mas devemos ter a noção de que nem todos consideram como verdade as nossas verdades - afinal, os crimes de Asia e Sakineh são vistas, aos olhos de seus povos, como ofensa ao seu país, uma vez que estes decretem religiões oficiais. Por um lado, temos o direito de divulgar nossas verdades ao acreditarmos que essas trarão consigo o bem, mas por outro, os próprio estatuto dos direitos humanos não permite que imponhamos nossas crenças - sejam elas espirituais ou somente morais.
Como posso então buscar a justiça se não posso aplicá-la? Num cenário nacional - mais especificamente no Brasil - podemos aplicar as verdades da igualdade, uma vez que a mesma é apoiada pela constituição. Mais ainda, podemos e devemos impor as verdades da honestidade, do cuidado aos pobres, da luta pela prosperidade de todo o país. Num cenário internacional, as linhas são levemente apagadas, uma névoa cobre o chão impedindo-nos de ver nossos pés. Não significa que não devamos arriscar nossos passos, nos posicionar através de pressões políticas, abaixo-assinados, de até mesmo decisões mais radicais como sanções ou boicotes. Porém, sinceramente, não sei qual a linha que permite uma ação incisiva - ou se há essa linha. Não concordo com invasões como a dos EUA no Iraque, contudo ao mesmo tempo dói meu coração negar uma intervenção externa nas vilas africanas que castram suas meninas, por questões culturais.
Como cristão, também não creio em várias verdades, apenas uma - não raramente negada pela nossa cultura. O que significa que diariamente sou confrontado com situações que para mim são erradas, mas para grande maioria das pessoas não há problema. No entanto, como vivo num país laico - também supostamente -, não posso investir contra uma pessoa porque ela adulterou, ou humilhou alguém querido, pois tais coisas não vão contra a lei do meu país. O que está em minhas mãos é divulgar a minha verdade. Posicionar-me para que consigam ver onde piso em termos morais e espirituais. Meu Deus mandou-me que amasse a todos como a mim mesmo, depois de amá-lo acima de tudo. Contra essas coisas não há lei. Ao menos não uma presente no Supremo Tribunal de Justiça, mas que lei me protegerá de favorecer minha família ou meus princípios em detrimento do meu trabalho? Ou escolher educar sexualmente meus filhos para que sejam heterossexuais, sendo que vivo e estudo num ambiente onde isso pode ser considerado preconceito? O que digo é que todo dia sou obrigado a não impor minhas verdades, mesmo que eu possa apresentá-las (dentro de um determinado preço). Talvez assim também seja diante de países que acreditem que nosso mal é seu bem. Talvez não possamos impor, apenas nos posicionar e esperar, com o coração pulsante, que seus caminhos sejam alterados... Eu também tenho que conviver com amigos que tomam decisões ruins (para meus olhos e fé), sem forçá-los a mudar... apenas divulgando e esperando... É um lado cruel da realidade.

25.10.10

Crescer é um processo



- Vem, filho. Este usou suas curtas pernas para pisar no misto de grama e terra, no jardim de casa.
A mãe pegou o vaso de barro cheio de terra, abriu o saquinho em suas mãos e depositou gentilmente cada semente em sua posse. O menino aprendia com os olhos, sedentos, ao ver a mãe remexendo a terra e molhando.
- É assim!
Era assim! E em algum tempo, viria a ser como uma de suas irmãs ao lado, grandes e robustas. Partiu a mãe. Ficou o menino, olhando. Olhava a terra, não mais virgem, olhava o tempo, o Sol. Talvez o Sol quente secaria as frágeis sementes. Seu destino foi a cozinha, em frente à janela, para não ficar com saudade de suas irmãs. Agora é o menino que estava plantado no piso da cozinha, ao lado da pia que gotejava. Olhou, olhou, olhou a terra, olhou o tempo, olhou o relógio e mediu o momento. Os olhos acompanhavam o ponteiro dos segundos, ignorando os outros dois. Este descia mais rápido, e subia também, era mais vantajoso. Olhou a terra mais de perto, para ver se algo se mexeu. Como nada acontecia, pôs o vaso de barro embaixo da pia gotejante. Pingo, pingo, olhar, olhar. Algumas gotas já escorregavam pela terra, mas nada acontecia. Olhou o relógio e os segundos continuavam a rodar, rodar. Abriu mais a torneira, e um filete de água matava a sede da terra. Olhou a água, a terra, o tempo, o relógio. Nada, mas nada. Rodou a torneira como o ponteiro dos segundos roda no relógio (mas para o outro lado). Agora as sementes deviam estar saciadas, deviam crescer. A mãe chegou e o menino ainda estava plantado, quase molhado. Perdeu um vaso.

O menino estava olhando para o ponteiro errado.

19.10.10

Olhando cavalos

Não é raiva, rusga
Já nem sei...
É isto: por que palavras?
Nelas há cores e sons únicos
Que fogem de qualquer lápis
Voam ligeiras
Dentro das paredes
E não se alcançam
Por que, então, fingir?
Se o que tenho não é nada
Não sei se me importo
Sei que não as importo

14.10.10

Michael Moore


para ver, pensar e agir²

Elisa Lucinda

Só de sacanagem - Elisa Lucinda (letra e vídeo)
Vale a pena ver, pensar e agir.

Cosmic Clones

Olhos de luz de noite me vigiam
No meu calcanhar
Perseguidores vorazes, minha vida aceleram
Rasgando a alma para cunhar moedas,
Uma como a outra,

Não sois vós figuras de mim?
De meu próprio pensamento?
Dizeis o querer do corpo sem sua permissão
A chance de um quadro completo matais
Tornais a luz escura

E a luz escura perde o brilho...

14.9.10

grandes problemas

olhe e pense...

[por ssilence in deviantart]
O mundo deve ter algo de errado. É fato. Ou talvez a cama (de casal) na qual acordo não seja suficientemente confortável. Quem sabe o clima seja o principal responsável por este peso enferrujado de agonia que me cerca - em mim e nos outros. A cada dia, um novo Sol, uma nova perspectiva. Os raios de luz penetram o quarto e podemos vislumbrá-los ou rejeitá-los com a cara amassada no travesseiro. A cada dia os pés - das seletas sortudas pessoas que podem - caminham por novos territórios - quem sabe alguns dias tocamos em partes da terra que nunca havíamos tocado antes e nem percebemos! Mas sempre há algo para nos distrair... sempre. Talvez os dias não sejam bonitos o suficiente, os pássaros devessem cantar mais, as ruas deviam estar sempre limpas e o vento sempre a bater no rosto - sem jogar o cabelo na cara. É fato. Deve ter algo de errado com o mundo.

8.9.10

Esperança se alimenta com perseverança

Entre as paredes e o mar
Pouca terra
Pouca vida

Faz da linha das ondas
O curto espaço de ar
Curtíssimo… quase nulo
Mas que sobrevive
Rega de água, sal, Sol e Lua
De um cuidado zeloso
Para não morrer, estando ainda vivo

Os poucos grãos secos
Pedem socorro ao homem
Passando os dedos na terra-quase-água
Regando seus mantos de lágrima
Este pede socorro a outro
Suas pernas estão mortas na vontade
Sente que não pode fazer nada

E – pronto – molha os olhos
De onda inesperada
Que quando na mente processada
Causa pesado desespero
Uma busca incessante
Pelos últimos suspiros secos
Que, poucos, alertam o homem:

“Ainda cá estamos… quase findos
Mas já estas de pé”
E saiu a derrubar muros e ondas…

4.9.10

O Experimento - Preguiça de Pensamento

- Mas não simplesmente desisti! - continuou, com o copo na mão. Intensifiquei o tratamento químico, agora com alucinógenos. Era o que deixava o objeto mais ocupado, mas criou uma dependência gradativa que prejudicava seu organismo das maneiras mais consideráveis: primeiro psicologicamente, e depois fisicamente.
- Mas deve-se considerar que o psicológico interferiu no físico?
- Sim, como suspeitávamos. Nesse sentido, os humanos são semelhantes a nós. A falta daquilo que trazia ao objeto um momento de serenidade que o fez mergulhar no exagero. De novo, o caos... Não restou outra opção: tirei os alucinógenos.
- Como ele se comportou?
- De maneira assustadora. Nenhum outro animal testado apresentava tamanho desespero e descontrole. Sofria com intensos calafrios, não tinha mais energia ou vontades.
- É como se ele desejasse seu mal! Absurdo!
- Não creio que seja isso. Observei que ele ainda mantinha reflexos e atos de proteção. Uma vez, tomei um risco enorme e expus o objeto a toda oportunidade de fazer mal a si mesmo, em todos os graus, em todas as perspectivas. Dia muito cansativo...
- E então...
- Ele prejudicava-se apenas com algumas das oportunidades que 1) não demonstravam nenhum perigo grave explícito ou 2) em que os prejuízos - ou até a abstenção de benefícios - eram de médio a longo prazo.
Perceberam que os copos estavam vazios. O homem fez sinal e foi atendido. Continuaram.
- Explique melhor...
- Presumo que meu objeto tinha um perfil psicológico não propenso à depressões emocionais - que fariam-o machucar-se propositadamente, ou até tirar-lhe a própria vida. Sendo assim, era contra a sua vontade que ele sofresse. Mas isso não o impedia de tomar decisões que o prejudicasse mais do que o satisfizesse - e é preciso ser claro no fato de que todas as opções feitas pelo objeto em questão traziam-no alguma vantagem - emocional, biológica ou social - porém uma preguiça de pensamento, talvez, não fizesse-o considerar que o mal trazido pela mesma escolha era maior do que as vantagens. Ou ainda de que, com sua escolha, viria um prejuízo posterior - na maioria dos casos, muito posterior - que superaria o êxtase dos benefícios. É mais um campo muito delicado e complexo das pesquisas. Talvez ousaria dizer que eles não tem uma visão clara de como medir vantagens e prejuízos.
Molhou a garganta e prosseguiu:
- Observe, criei um ambiente muito comum socialmente, o de festas - que, por sinal, também daria uma pesquisa antropológica muito interessante. Minha intenção era proporcioná-lo o prazer de múltiplas relações emocionais. Fui bem sucedido. Na mesma noite, no entanto, enquanto verificava seus sinais mentais, cardíacos, químicos e, principalmente, seu fluxo de animus, vi o último muito instável. Analisei os gráficos e percebi que o maior estrago da jornada foi feito entre a terceira e a quarta onda, apresentando um ruído quase da mesma intensidade que o sinal original.
- O do Segundo Vazio...
- Sim, o respectivo às relações interpessoais. Tanto envolvimento emocional instaurado e quebrado rapidamente causou uma instabilidade que repercutiu durante toda a semana - embora apenas alguns picos fugiam do inconsciente.
- Mas esses envolvimentos significavam tanto assim? Não foram criados oportunamente?
- Sim... imagine se fossem mais relevantes. Outra situação curiosa é a familiar. O objeto não tinha extensos laços familiares - o que, na lógica, significaria uma maior importância e cuidado -, mas mesmo assim gerava desconforto e desapego.
- Mas não era a família responsável pela estabilidade emocional de quase todos os experimentos anteriores? Dos outros animais?
- Exato. Ao mesmo tempo que existe o Segundo Vazio, os humanos insistem em rejeitar a melhor oportunidade de preenchê-lo. E de, talvez, transbordá-lo. Culpo a preguiça... preguiça do pensamento.

26.8.10

Aprendendo a se amar

Era uma tarde fria
Num dia de chuva que não caía
A água e o Sol suspensos
Só o último dando seus gracejos

Um pássaro de asas largas
Chegava alto e rápido no Sol e água
Mas de um jeito, mantinha
Fechada sua vontade de voar
Podia a qualquer momento
Abrir, soltar, saltar
Mas o medo o prendia certo
Numa gaiola sem cadeado
E todos os bixos em baixo:
"vem água, vem água, vai pássaro!"

Foi numa tarde fria
De dia onde chuva não caía
Que o pássaro saiu do chão
Passou pela porta que não o prendia
Chegou nos altos, sem mais ninguém
Conversou com o Sol e as nuvens também
E a água caiu
Os dias mudaram

[nem liguem para os dois posts seguidos sobre pássaros, pura coincidência]

8.8.10

Miracle

A lonely bird sat
On the top of a single tree
It has wide sharp eyes
But nothing, though,  it sees
No expectations,
No worries at all,
But there's no starvation
Be it winter or fall

2.8.10

O Experimento - Caos

Ele já esperava-o com um copo na mão. Sentou-se na banqueta ao lado e fez sinal ao barman, que respondeu com um "quanto tempo! O mesmo de sempre?". Fez que não, e escolheu sua bebida. O homem, que não se movera até então, virou o rosto adornado por um leve sorriso enjoado e recebeu o recém-chegado:
- Realmente, quanto tempo... entendo que a viagem foi demorada. E perigosa. Mas, diga-me, como foi?
- Não vale a pena.
- Mesmo? Só isso? 
O outro respondeu com a cabeça, logo após tomar um gole amargo e descansar seu chapeu no balcão. Voltou os olhos para seu interlocutor e confirmou:
- Não vale nada.
Num misto de surpresa e frustração, o homem balançou a cabeça:
- Não faz sentido! Nós achávamos que...
- O que nós achávamos - interrompeu o outro - não valia nada. Depois de um suspiro, continuou, "é tudo vazio como o branco e imprevisível como o negro. É um ambiente por demais hostil para o humano, sem expectativas de uma grande vida. De fato, nossa teoria não confere.
Depois de uma breve pausa, o homem adicionou, ainda inconformado:
- Isso é completamente irracional! Homens expostos ao prazer contínuo deveriam experimentar uma vida completa e feliz!
- Não foi o que aconteceu. Descobri ser praticamente impossível fazer um homem feliz -tomou mais um gole e seguiu relatando. Manipulei praticamente todas as situações que causavam prazer para o meu primeiro objeto: comecei com comidas, bebidas e entretenimento em mídia, como estudamos, porém o resultado se distanciava muito do objetivo, ele sentia-se inseguro e solitário. Dei-lhe sensação de segurança e criei oportunidades para que ele satisfizesse suas necessidades sexuais e relacionais. Os resultados foram positivos no começo, mas rapidamente o objeto sentiu-se entediado e buscava sempre algo novo, inquieto e, mais uma vez, inseguro.
- Insegurança parece ser um grande desafio para essa espécie.
- Com certeza. Aprendi que eles são extremamente instáveis em seu humor, dependentes do jeito que acordam, daqueles ao seu redor, do ambiente e até do clima!
- É possível que tais condições resultem em reações químicas, afetando assim o humor do objeto?
- Na maioria das vezes, não. Há, obviamente, extremos como a completa inadequação climática, que fazem o corpo humano trabalhar em condições adversas, causando desconforto. Aliás, o extremo é uma característica marcante nos humanos - tomou o último gole e parou por uns instantes, pensativo, como se apenas agora chegasse a essa conclusão. Em todas as situações a que o objeto foi exposto, ele persistia na fonte de prazer, sugando dela o máximo possível - como se essas coisas tivessem um limite de prazer a oferecer. Talvez isso que estimulasse o tédio do objeto, o constante desespero por uma sensação maior que a anterior. Parece-me que há algo invisível dentro do ser humano que faz com que ele tenda para o caos.
- Interessante... mas eles rejeitam a ordem?
- De forma alguma. Em várias áreas de suas sociedades eles tem a ordem em grande estima.
- Mas tendem ao caos?
- Sim...

7.7.10

Meu medo-próprio

O mundo em volta existe quase que sumindo. Pelo menos nestes momentos.
Seria demais arriscar um beijo? Ou ele também desvaneceria? Já não sei como saber. Muitos poetas já vasculharam por estes quartos sombrios que temos na gente, buscando definições de coisas que parecem nascer prontas, como tristeza, saudade, raiva, amor... Nunca fiquei satisfeito com nenhum deles - apesar do encanto que podem trazer suas palavras. É verdade que a busca insistente pode ter valido a pena (se não chegaram em boas respostas, pelo menos boas perguntas eles tem) e talvez eu mesmo seja impelido a fazê-la. Mas não hoje.

Hoje já é um dia diferente. Um dia sem você.
Certo... confesso que nunca passei um dia com você, mas não terei mais a sua companhia em meus sonhos - talvez nos pesadelos. Já nem lembro mais porque queria-lhe por perto. Não digo isso pelo que se passou ontem, mas pelo que se passa todos os dias; não só comigo, mas todos. Nascemos e pouco depois somos induzidos a esperar pelos outros. Veja só, todas nossas expectativas são direcionadas a um alguém; a todo instante, andamos, respiramos, compramos, comemos ou deixamos de comer por causa dos outros. As nossas decisões repousam sobre todo um chão de conselhos, aprendizados, ordens e olhares.
Somos escravos do outro.
No entanto, o humano raramente vive para o outro. Andamos, respiramos, compramos, comemos ou deixamos de comer sempre olhando para dentro, quase contraídos. Tendemos a sempre pensar através de nossa mente, olhar pelos nossos olhos - o que seria muito natural, se não dependêssemos dos que nos cercam. A conta apresenta diversas incoerências: o ser precisa do contato e aprovação do seu próximo, é regido por essas expectativas, mas nunca se lança a ele, fica preso em si mesmo. Ora, se as outras pessoas são importantes tão somente para alimentarmos uma imagem própria que aceitemos, por que ainda estamos grudados nela?
Somos escravos de nós mesmos.
E se, por um momento, não nos importássemos com o que pensamos sobre nós mesmos... estaríamos livres dos outros. E então, fugiríamos para um mundo próprio e solitário, enfim satisfeitos? Não... sumiríamos, assim como o mundo, se assim o fizéssemos. Se nos libertarmos da opinião dos outros, estaremos igualmente livres para nos desvencilhar da sombra do medo-próprio e nos atirarmos ao outro; servir... amar.
Só podemos ser verdadeiros se nos esquecermos? Bem, não é possível esquecer a nós mesmos... Mas se tivéssemos um lugar-seguro, um banco onde o medo-próprio pudesse descansar - e desvanecer com o tempo - passaríamos a andar, respirar, comprar, comer ou deixar de comer porque escolhemos, não por causa daqueles que olham sobre nós. E assim, passaríamos a perceber como as pessoas vivem e como poderíamos ajudá-las - afinal, por mais que estivéssemos libertos do julgamento exterior, não significa que deixaríamos de depender da presença de humanos à nossa volta.
E esse banco? poderíamos fazê-lo? Acredito que não... da mesma forma que não tivemos controle algum sobre nosso próprio nascimento, algumas coisas na vida não podem ser operadas por humanos. Está na hora de admitirmos que não nos dominamos... que a vida não foi feita pelo acaso e que o destino não controla os passos nossos.

Enfim, o que quero dizer é que te queria perto por causa de mim mesmo... e isso é errado. Quando te quiser por sua causa, voltarei.

20.6.10

Beleza de mudar

Mudar de corpo carece
De um sentimento novo?
Sim, mas não só.
Precisa mesmo é da pele
Nova, folhada, revestida
De pouco em pouco trocada
Na dor da faca profunda
Que rasga a gordura,
E tinge o rosto.
O rosto de outro,
Do mesmo que pego pele
Que visto sobre mim
Sobre a carne macia,
Exposta e vulnerável.

No fim, sou outro?
Na verdade, no meio...

9.6.10

Treze, Quatro, Oito

Minhas pequenas mão se lembram
Do toque enevoado na razão,
Quando do desespero a semente
Caiu nas terras minhas, úmidas e aradas.
Cresceu ali um pé-de-choro,
Com flores de tormento.
Maior, mais larga que as demais plantas,
Sugava delas seu alimento.
O golpe do machado ressoava:
"em vão... em vão... em vão"
Enquanto assistia suas sementes,
Se espalhando por todo o chão.

Pedi aos céus uma ajuda qualquer,
Que me consolasse um pouco o coração;
Veio, só, uma seca das brabas,
Perdi tudo que tinha na plantação.
Restava apenas a maldita árvore,
Que zombava do meu rosto em prantos.
Ao céu se ergueram os olhos;
Minha boca: raivosa, calada...
O desespero me vencera:
Perdi ali minha morada.

Aos poucos, porém...

Da árvore, o riso zombeteiro sumiu;
Seus galhos todos afrouxaram;
E o vento dizia: "caiu... caiu... caiu".
A lâmina, enfim, completou seu trabalho,
Enquanto via o saudoso vento
Carregar nas suas velhas costas
Grão, chuva e sustento.
Minhas grandes mãos recordam
De cada um desses feitos;
Se voltam ao contente céu estrelado:
"Obrigado... obrigado... obrigado"

3.6.10

de vez em quando

De vez em quando
Vem, só, na gente
vontade louca
de se rasgar.
Rasgar o verbo,
rasgar a carne,
de tanta gente,
de tanto Homem,
até a nossa
há de acabar.

Vem d'outro lado
Maneira forte,
que nos assalta
sem nenhum medo
de se errar.
"Coitado!", eu digo
de nossa gente,
dos nossos Homens:
que jeito tem
pra se ganhar?

Moleza nossa
é que não é:
é impossível
arredar pé.
Sozinho não
dá-se um jeito.
Pode tentar:
não tem efeito.
Pra terminar,
te digo isso:
solução só
é Jesus Cristo


18.5.10

Suicídio?

Por um momento, nem sei mais porque estou fazendo isso. Mas logo essa sensação passa. A frieza pode ser imensurável, mas vale a pena; é considerada de forma diferente, podando o oxigênio do ar. Os passos não cessam e insistem em fazer um ritmo contagiante. Combinam com os meus passos, talvez até com meus movimentos: tempo no pé, contratempo no dedo, tempo no pé, contratempo no…. ai, odeio quando as coisas não vão de acordo com os planos.

Mais um cai e não posso fazer mais nada… quer dizer, além do que já fiz. Bem que eu podia ter pegado uma cadeira mais confortável. Ah, de novo, por que estou fazendo isso? Ah, é… a vida… é a resposta de tudo. Ou a falta dela. Que momento magnífico, o encontro de vários destinos distintos. Ou melhor, destinos que seguem duas linhas tortas: a morte e a vida. Talvez se eu tivesse comido sobremesa hoje… eu… não, continuaria o mesmo.

Os passos pararam um pouco. Talvez seja melhor eu dar uma olhada, ver o que está acontecendo. Lá embaixo continua tudo como estava,talvez estejam na escada. Ai, saco… Não posso me dar esse luxo de ser visto. Mas é tão bom ver as pessoas tão pequenas e frágeis, pequenos pontos em busca de sentido que apenas pararam na beira da calçada na esperança de encontrá-lo. Como algumas pessoas podem ser desesperadas. Talvez encontrem outra coisa… hum, se bem que alguns destinos estão reservados apenas para certos seres. Afinal, nem todos merecem morrer. Veja aquela mulher, por exemplo, aposto que ela tem um filho e uma mãe dos quais ela cuida. Batalha, mas consegue cuidar. No final do dia a mãe ainda reclama que o dia foi muito quente e o filho chega com más notas. Mas nada disso é culpa dela, aposto. Ela faz o que pode… Trabalha por ela e pelo marido falecido para sustentar uma casa com três e todas as contas que vem junto. Escola particular nem pensar. Sobrevivência vem primeiro, como um instinto. Talvez ela tenha parado aqui embaixo para sentir algo diferente no dia, botar tempero nessa realidade chata.

Ah, quem sou eu para culpar a realidade. A minha sou eu mesmo. Eu sou chato. Perguntem para eles, os de boca escancarada. Eles dirão que até tem pena de mim, mas não me suportam, não mesmo. Ai, bate um remorso de vez em quando. Esse é o tipo de sentimento que temos que deixar de lado, não acresce em nada (mas para onde eu cresceria, mesmo?). Lá vem mais um. Já vejo ele abrindo a porta e me olhando com cara de dó e desprezo, caindo junto aos outros tantos. Ué, cadê os passos que ouvi? Deixa eu despertá-los por um instante, só um momentinho. Aqui, ali, aqui, lá, lá, ahá! Achei. Que pena, podia não ser assim, simplesmente, mas já que é… fazer o quê?

Cinco e quatorze. Está quase na hora. Espero que tenha gostado. É, você mesmo que está na minha cabeça, observador oculto! Não torne a cara, não! Te vejo sim e não há escape! Mas não se preocupe, não te darei o mesmo fim que o meu… espero. Apesar de você merecer morrer. Quem mandou simpatizar com um assassino? Quem…

19.4.10

Senhor das Árvores (começo)

Esta história começa com uma menina triste. Mas peço, caro leitor, que não fique triste por ela. Não quero dizer que ela é uma má menina, que não merece compaixão (se é assim que a compaixão funciona), mas digo isso porque, como você poderá perceber no decorrer da história, a sua tristeza será motivo de alegria. Não sei se vocês já tiveram esta impressão, mas me parece que muitas das coisas ruins que vivemos mais adiante serão transformadas em riso, desde aquele momento constrangedor que passamos na frente das outras pessoas até decisões inicialmente ruins, mas que renderão bons frutos. Esse é o caso de Lily, que está chorando silenciosamente porque seu pai aceitou um novo emprego na cidade (o que seria uma ótima notícia, se isso não resultasse no abandono da maravilhosa casa no campo onde moravam até agora). Pois é, Lily achava uma grande maldade os fazerem mudar de casa só por causa de um emprego novo, ainda mais quando sua antiga casa tem um jardim enorme com uma linda árvore com um balanço e uma casinha rosa repousando na grama, onde Lily guardava seus brinquedos favoritos e vivia grandes aventuras. Ela imaginava que morariam num apartamento apertado e sujo, com ratos em todos os quartos que não iriam a deixar dormir e um intenso barulho de cidade – seja lá o que isso significa. Foi assim que Lily viu pela última vez a sua casa no campo: com lágrimas nos olhos, sendo consolada pela mãe.

17.4.10

Sem título

Eu, insustentável ser,
Descobri teu amor
Quando vi teu querer.
Mesmo eu cheio de dor,
Vaso velho estilhaçado,
Cidade pobre em ruínas.
Descobri ser amado,
Quando assim me querias

Incoerência do Ser

Minh'alma mira meu rosto,
Mas nada encontra.
Encontra, sim,
Falas codificadas em nós;
Caretas que negam as mãos;
E pés virados,
Cada qual para seu lado.

"Que indecifrável ser é este?
Sendo aquilo que desgosta...
Fazendo o que não quer...
Na sua constante e débil luta,
Luta de si contra si mesmo,
Debatendo no ar vão movimentos,
e submergindo...
No balanço dum belo barco
Que há muito perdeu sua razão".

Encontra, sim, muito...
Mas nada encontra.

31.3.10

Mestre dos Olhares

Quem diria que uma viagem de ônibus revelaria tantas coisas. Na verdade, só uma. Uma que vale por tantas e tantas outras. E tudo isso aconteceu por intermédio de uma pessoa. Talvez meia-pessoa fosse o mais adequado. Quem sabe até menos que meio.
Percebi-o enquanto me ocupava com os fones de ouvido. Viagens obrigatórias de ônibus não são lá tão divertidas, principalmente quando se está sozinho. Os fones enroscaram no boné - tão baixo, que me protegia de ter que olhar para as outras pessoas. Vendo a minha falta de destreza, o mesmo boné resolveu o problema: "Deixa que eu saio por uns instantinhos... afinal, assim também ganho um descanso. Sua cabeça não é tão confortável assim, sabe?". Ignorei este último comentário, mas aceitei o favor.
Assim que o boné pulou de seu confortável lugar, vi-o, olhando para mim. Nossos olhares persistiram, até que ele desviou levemente para cima, mas não como sinal de derrota, havia nele uma superioridade, era como se ele não precisasse de mim e eu necessitava do seu olhar. Eu era o inferior.
Para o meu sossego, ele atendeu ao meu clamor e voltou novamente seus olhos para os meus. Olhava curioso. Olhava bravo. Olhava choro. Não sabia direito como olhava, só que não fazia mais nada; não chorava, nem ria, não dava o menor sinal de satisfação (como era habilidoso no olhar, mesmo tão pequeno!).
Balancei aos poucos minha cabeça, acompanhando o ritmo da música que saía dos fones. Mal sabia eu que não se consegue ouvir nada de um fone que já se encontra posto - uma lei quase universal, ali ignorada. Até meu boné riu de mim. Não liguei. Continuei balançando a cabeça, na expectativa de que este gesto quase-louco sustentasse seu olhar. Não adiantou. Olhou para tantos outros lugares, e olhava com a admiração que faltava em mim, com espanto, como se tudo fosse novo, até as cores. Os dedos descobriam tudo que tocavam e valia tudo a pena.
De repente, ele saiu, me deixando sozinho.
Senti-me como ele, como um pequeno bebê. Não sei se ainda me recuperei do encanto.

28.3.10

23.3.10

Apenas má sorte, certo?

João Mansinho - apelido dado pelos colegas de classe, o qual João não se agradou muito, mas viu boa intenção - é um garoto honesto. Sempre vê o bem nas pessoas e se importa com elas. Esforçado e trabalhador, era um aluno dedicado, tirando ótimas notas, além de ajudar seus amigos de classe - os mesmos que o apelidaram - que, apesar de tentarem tanto, não entendiam o conteúdo das aulas e por isso João fazia junto deles (ou, por eles) as lições que valiam nota e passava a todos as respostas na prova. Depois da escola, trabalhava meio período numa padaria, ganhando um salário mínimo - salário que considerava justo, pela sua pouca idade e inadequação curricular, como dizia seu chefe. Como seus muitos colegas não tinham a mesma sorte de trabalhar, pagava-lhes seus lanches na hora do intervalo quando pediam - e pediam muito -, contraindo por algumas vezes, dívidas com o dono da cantina.
Esse mesmo João acabou de fazer dezoito anos e decidiu dirigir. Mas, como ele ainda não estava legalmente habilitado, procurou os procedimentos adequados para se regularizar como motorista brasileiro. Chegou na auto escola M..., muito famosa na cidade, e perguntou o que deveria fazer para tirar seu documento de habilitação para condutor. Porém, como a atendente estava falando ao celular, decidiu esperar cordialmente até que a conversa cessasse. Uma vez acabada a conversa, João fez sua pergunta, contudo foi interrompido por um jovem rapaz que chegou cumprimentando a atendente euforicamente. João achou justo ela o dar atenção, afinal, eles deviam ser velhos amigos para se cumprimentarem daquele jeito. Sua suposição praticamente foi confirmada depois de trinta minutos de conversa e risadas. Enfim, a atendente virou o rosto na direção de João Mansinho e disse, durante os intervalos de várias mascadas de chiclete:
- E você, quem é?
João se explicou e a gentil atendente apenas respondeu:
- Carro e moto?
João, que não tinha pensado anteriormente nesta questão, fez que sim. Depois de revirar alguns papéis, a moça escolheu alguns e mandou João assinar nos campos devidos. João até queria fazer algumas perguntas sobre o contrato, mas achou a auto escola M... muito confiável e não questionou nada.
O preço que posteriormente a gentil atendente lhe passou fez João coçar a cabeça e começar a pensar num outro horário que pudesse arranjar um outro trabalho para que pudesse pagar a auto escola, além de todas as suas outras obrigações. "Ainda bem que já acabei a escola e não tenho mais hora do intervalo", pensou João, mas logo reprimiu esse pensamento maldoso. O trabalho escolhido foi numa pizzaria que ficava aberta dia e noite, o que era ótimo, pois assim João podia trabalhar no período noturno, horário que não coincidia com seu outro emprego. O salário: o mesmo que ganhava na padaria - o que continuava sendo justo.
Por fazer cursinho de manhã e trabalhar o dia inteiro - sendo muito requisitado por seus chefes -, João teve algumas dificuldades para cumprir o procedimento burocrático da auto escola, demorando cerca de três meses para que se começassem as aulas teóricas no Centro de Formação de Condutores. Faria as aulas durante os fins de semana, durante um período de cinco semanas, porém como vez ou outra algum de seus chefes pedia-lhe que fizesse hora extra nos fins de semana, o processo alongou-se para oito semanas (e mais alguns bons reais por reposição de aula, os mesmos reais das horas extras).
Pelas mesmas dificuldades com o tempo, demorou para que João cumprisse as aulas práticas necessárias, sendo que três das vinte aulas não puderam ser realizadas porque o carro que ele usaria estava quebrado, sem contar as duas aulas que seu instrutor alegou estar doente e o fez levá-lo na sua casa durante a aula. Felizmente, o mal-estar durava pouco e até o fim da aula ele já voltava à saúde.
Após onze meses de sua inscrição - e já com dezenove anos -, João finalmente faria a prova prática! João alegrava-se com o fato, pois finalmente poderia largar um dos empregos assim que passasse, pois já começava a se sentir cansado.
Sentou-se no assento do motorista, cumprimentou o examinador, que respondeu com um doce resmungo, colocou o cinto, ajeitou o retrovisor e o espelho esquerdo - o espelho da direita já estava em posição satisfatória. Assim que ligou o carro, o examinador resmungou algo parecido com "Esqueceu de arrumar o espelho direito" e anotou um "menos um" no papel de João. Ele engoliu em seco e achou melhor não contestar. Mexeu um pouco no espelho da direita e se ajeitou novamente no volante. Engrenou a marcha e soltou o freio de mão. Quando olhou pelo retrovisor, havia apenas um carro a uma considerável distância, então João decidiu sair: deu a seta, virou o volante, acelerou e... "Tem um outro carro vindo. Menos um ponto". O resmungo repentino do examinador assustou João, que por reflexos pisou bruscamente no freio: "Parou no meio da rua. Reprovado. Próxima!". João, triste, desceu do carro, lamentando seus erros bobos, e deu lugar a outra jovem que estava com ele. Esta, mal sentou no banco do motorista e, considerando que João já acertara a posição dos espelhos, pisou energicamente no acelerador, fazendo o carro dar um salto para frente, quase esbarrando no carro que vinha na direção oposta. Com muita agilidade, a jovem desviava dos obstáculos e mudava a marcha, enquanto o carro pulava e seguia seu caminho por várias linhas tortas. O examinador, assustado e segurando-se - literalmente - no banco, disse - pela primeira vez em voz clara e audível - "Pode! ... Parar!... Aqui!". A jovem moça parou com destreza impressionante o carro e virou-se ao examinador:
- Como fui, fofinho?
Este, desconcertado pelo elogio, completou:
- Er... Aprovada, eu acho.
João voltou para casa decepcionado e frustrado. Disse para sua mãe que iria na auto escola no dia seguinte para marcar um novo exame. Chegando lá, perguntou quanto seria a reprova e obteve a seguinte resposta:
- No seu caso, querido, hoje faz um ano que você fez a sua inscrição, então você vai precisar fazer tudo de novo...
João respirou fundo e considerou. É, mais um ano de auto escola pela frente - e nem poderia largar um emprego.

Em homenagem ao feriado nacional do Dia-em-que-tirei-minha-carta.

28.2.10

Café aguardado

Um mundo novo espera adiante
Cheio de outrora velhos conhecidos;
A alegria expressa no semblante
Daqueles tão sonhados meus amigos.

Tempo espera, sem pressa,
Pra nos encontrarmos;
Gentil conversa, desperta,
Sonhos ritmados.

E juntos vamos caminhar a pé,
Convido pra tomarmos um café,
Eu tenho tanto para te falar,
Pois esperei quase uma eternidade.
Quero te falar de todos meus planos,
Dos sonhos que tive para os seus anos,
Quero, enfim, poder te abraçar,
E te mostrar real o meu sorriso.

Ah! Mas o tempo espera,
Congela a Primavera;
E temos uma eternidade.

Perfeitamente formado,
Antes nunca imaginado;
E temos uma eternidade...



26.1.10

Natal - parte final

Carregava grande peso porta adentro e o menor deles era seu ex-marido. Ele também, por sua vez, era pesado. Depois do susto, os ânimos de Renata se acalmaram - não em paz, mas voltando a forma mórbida que se encontrava. Deitou-o na cama, onde ficou sem reação alguma a não ser exalar que misturava álcool e suor, quase insuportável.

- Estou indo, então. E virou-se para a porta, deixando o corpo no seu sono vivo. Porém, num gesto rápido, o corpo estendeu a mão até a mão dela, segurando-s com força.
- Não me deixe sozinho.
- Eu não posso ficar, tenho um compromisso.
- Que compromisso, um encontro?
- Não, claro que não!
- O quê, então?
- Minha irmã, um compromisso com a minha irmã.
- Julia? Mas o que você tem com ela?
- Não é nada, volte a dormir, você vai ficar melhor?
- Como nada? Não é um encontro, mesmo?
- Não! Já disse que não! É só um coral!
- Coral? Julia canta num coral...
- Pronto?
- Me leva junto.
- O quê... não... não dá...
- Por quê?
- Você está bêbado e cheirando mal!
- Eu tomo um banho... por favor... não me deixa sozinho... me leva junto.

A verdade é que Renata sentia dó do homem que a agarrava pelo punho. Tentava encontrar algum jeito de deixá-lo ali e não precisar mais voltar e se preocupar com ele, mas nunca fora assim, irresponsável. Temia pelo que podia fazer ao estar sozinho e não queria que mais nada acrescentasse peso a sua consciência:

- Vá tomar banho, então... Não conseguia nem sequer falar agressivamente com ele, discutir, xingar, culpar... queria paz, só isso. O corpo cambaleante fez uma tentativa para levantar, fracassada. Renata logo o ajudou e endereçou ao banheiro. Ligou o chuveiro, testou a água e fez sinal para que entrasse. Antes que terminasse de tirar a camisa, Renata saiu do banheiro e fechou a porta. O quarto estava bagunçado... será que ele despediu a empregada? Não duvidaria. Para que não pensasse muito, ocupou-se em escolher a roupa para o ex-marido, deixando-a dobrada em cima da cama. Foi para a sala e arrumou o que podia, pois não demorou muito - pelo menos não tanto quanto ela esperava - e Marcos saiu pela porta do quarto de roupa trocada e barba feita. Parecia outro homem, mas a expressão do rosto era mesma: um misto de vergonha e tristeza.

***

Julia ansiava por aquele momento o dia todo. A manhã lhe frustrara de tédio e pensamentos negativos, mas agora a expectativa pela apresentação a distraía de todos os outros problemas. Quedou-se atrás do palco, esperando os outros chegarem para o aquecimento, mas ainda faltavam alguns minutos. Ensaiou um pouco sozinha, mas, preocupada em desgastar muito sua voz antes da cantata, cessou o canto e releu as partituras, que entendia razoavelmente. Chegou no seu solo. Leu as palavras e notas... tudo parecia decorado.

***

Mal percebera, contudo seus olhados estavam cada vez mais pesados. O som das pessoas conversando pareciam confortá-la e deslizou o corpo pela cadeira, apoiando a cabeça no encosto. Sentia alguma coisa nova, como se tivesse escapado da sua vida e mergulhado num outro mundo, de grande paz...

- Sofia? Uma voz leve perguntou.
- O que foi, pai? Mas, ao abrir os olhos, foi tirada daquele mundo tão pacífico e viu apenas o rosto de Gustavo, que tentava acordá-la do jeito mais cômodo possível, alertando-a do eminente começo da apresentação. Gustavo ficou um pouco desconcertado com a resposta, mas continuou:
- Acho que é um coral, uma cantata de Natal. Foi então que Sofia levantou os olhos e observou o local. As longas cadeiras de madeira, janelas compridas, um teto reto coma figura de uma cruz que se estendia até o fundo, acima do palco onde, ao fundo, encontrava-se uma série de largos degraus. Presumiu que seria onde o coral se colocaria quando entrasse. Nunca havia estado numa igreja antes, mas achava que seria diferente, com mais emblemas e pessoas vestidas formalmente, porém a diversidade de tipos de pessoas e vestimentas a espantou, comparando o ambiente ao de uma apresentação num clube - exceto pela cruz no teto. Pensou em sair, mas como não tinha a menor ideia de onde iria, não manifestou seu desejo.

A música começou, seguida pela entrada do coral. Passou os olhos pelos coristas e uma em especial a intrigou. Seu rosto era muito familiar... família... sua tia! Seus olhos se arregalaram e o corpo encolheu. Apesar de não querer ser descoberta, sentia grande alívio em ver alguém familiar e começou a reparar nos traços de sua tia em comum com de sua mãe.

- Está tudo bem com você? - se preocupou Gustavo ao ver o corpo encolhido de Sofia e como suas mãos se abraçavam firmemente. Ao encontrar o olhar do jovem preocupado, as mãos de Sofia relaxaram e descansaram no seu colo.
- Sim... e não disse mais nada, pois lembrou-se novamente no seu pai, perguntando se nada havia acontecido com ele - e sentindo um pouco de culpa por não ter dedicado muito tempo para pensar nele... afinal, era seu pai. Não se lembrava que sua tia cantava, nem sequer que frequentava uma igreja... talvez tenha procurado uma durante esse tempo que passou longe da família... talvez tenha procurado uma por esse tempo que passou longe da família, não sei... mas ela parece contente... pelo menos enquanto canta - cantar tem dessas coisas, nos deixa mais confortáveis e despreocupados, nos diverte.

- Sabe - disse Gustavo, interrompendo o pensamento de Sofia - eu não me sinto muito confortável aqui... Sofia buscou seu olhar, que parecia pedir socorro. Meu pai ia numa igreja... não vai mais... morreu. Estou só com minha madrasta agora e acho que ela só me aguenta por algum senso de responsabilidade, já que não sou seu filho, nem nada... além de não tratar ela muito bem - sentiu uma urgência em desculpar-se, mas a pessoa certa não estava ali... melhor dizendo, ele não estava com ela, ou com ninguém que conhecia... em plena noite de natal.
- Ele morreu? - desta vez foi Sofia quem interrompeu os pensamentos de Gustavo.
- É... câncer... foi questão de três meses desde o diagnóstico... fomos até num dos mais reconhecidos cirurgiões de São Paulo, mas nem ele conseguiu fazer nada... meu pai falava tanto que Deus tinha um plano para minha vida, para a vida dele, mas... ele morreu... será que o plano de Deus para ele seria morrer? Não faz sentindo... fez-se uma longa pausa, interrompida pelos aplausos relativos ao fim da primeira música. Sofia queria consolá-lo, mas não encontrava nenhuma resposta adequada... ela mesma sentiu uma semente de raiva instalando-se no seu peito, plantada pela indignação de Gustavo. Pensou em como sua vida descontrolou-se rapidamente... se existisse um Deus, ele devia ter feito alguma coisa, devia ter impedido... impedido que... apesar de procurar assiduamente, não encontrou verdadeiramente algo de ruim que lhe acontecera ultimamente que não tenha sido resultado de sua escolha, escolha de fugir e separar-se da sua família... não tinha como culpar Deus, como Gustavo podia... devia culpar apenas a si mesma.
- Meu pai - continuou Gustavo - apesar de toda dor... era diferente... era ele quem nos acalmava, eu e minha madrasta... parecia não se importar muito em morrer. Nem parecia que ele estava doente... ele falava que estava em paz. E calou-se Gustavo.

***

A apresentação do coral corria perfeitamente e pouco faltava para o solo de Júlia... na pausa entre as músicas tentou recordar rapidamente as palavras. Passou rapidamente por elas, como sempre passara. Percebera que nunca havia prestado real atenção no que cantaria. Tentou raciocinar, mas a próxima música já começara. Uma sensação que nunca antes a ocorrera começou a se fazer presente: cada letra que cantava, ao mesmo tempo martelava seu coração e penetrava suavemente. Tentou combater este sentimento estranho, mas lágrimas começavam a se ajuntar, deslizando gentilmente pela face. A garganta tremia, assim como sua voz, e um grande temor tomou conta de Júlia, com medo de que seu solo estaria arruinado pela sua fragilidade. Mas as palavras continuavam saindo de sua boca, e com elas mais e mais lágrimas banhavam seu rosto até que não via mais nada. Continuou cantando, até que a música findou-se... não queria levar a mão aos olhos, pensando que revelaria seu choro, então tentou recordar o caminho até posto de solista. Não se lembrava de mais nada que deveria cantar, mas aguardou pacientemente no seu lugar. Com um longo suspiro, o canto começou. A voz não saía tremida e deformada, como temia, mas extremamente comovente... cantava agora todas as palavras com o coração.

***

Soou em meio à noite azul, um hino divinal;
Jamais com tal beleza assim, ouviu algum mortal.
Do Céu ao mundo, graça e paz! Excelso dom gentil!
Dos anjos essa doce voz encheu o céu anil.

Enquanto os anjos inda estão cantando, com prazer,
Louvor por todo o céu sem fim ao mais sublime Ser,
Então, suave e meiga voz, descendo como um véu,
Cantou que já nasceu Jesus e uniu a Terra ao Céu.

Oh! quem nos dera sempre ouvir as vozes divinais!
Sentir a paz do Céu de luz, país dos imortais!
Louvar a Cristo, o Rei dos reis, com anjos em canção!
No lar possamos nós também cantar a salvação

Sofia ficou admirada com a voz de sua tia, que tocava-lhe profundamente, dando passagem para que a letra do hino fluísse por sua mente e a questionasse. Ao mesmo tempo que via a impossibilidade de acreditar no que estava sendo cantado, percebia o choro de sua tia, que parecia clamar ser tudo verdade. Ao fim da canção, todo o público se levantou para aplaudir. Sofia não queria se permitir pensar mais sobre a música - apesar de no seu íntimo desejar imensamente que a paz que fora cantada seja verdadeira. Chamou Gustavo, que o acompanhou, confuso. Mas ao sair pelas portas iluminadas, seu corpo congelou-se de medo e emoção: deparou-se com seus pais... juntos... Renata abraçou-a de maneira sufocante, como se temesse que ela escapasse pelos seus braços. Um alto grito ouviu-se ecoando pelas ruas... um grito de contentamento e alívio. Sofia não resistiu e também fechou seus braços ao redor de sua mãe, deleitando-se no calor do abraço. Quando abriu seus olhos, deparou-se com um homem totalmente diferente do que vira anteriormente, no mesmo dia. Os olhos marejados de seu pai fitavam-a com espanto, até que sua mão alcançou-a, acariciando seu rosto. Viu seu casaco vestindo-a e sorriu, imaginando que conseguira cuidar dela, mesmo estando longe. Os dois se aproximaram, como que querendo dizer algo. As palavras saíram no mesmo instante:

- Me desculpa... e os dois riram.

***

Quando Gustavo chegou em casa, Raquel, sua madrasta agarrou-o desesperadamente:

- Estava tão preocupada! Por que você não atendeu o celular? Gustavo lembrou-se de como caíra à tarde, e de como não vira mais seu celular desde então.
- Eu acho que perdi... desculpa... mesmo... e abraçou-a lentamente.
- Não importa, desde que você esteja bem. Quando se separaram, Gustavo viu uma mesa convidativa, posta para duas pessoas. Sentiu paz como nunca antes sentira... Quem sabe Deus realmente tivesse um plano para cada um... quem sabe?