26.1.10

Natal - parte final

Carregava grande peso porta adentro e o menor deles era seu ex-marido. Ele também, por sua vez, era pesado. Depois do susto, os ânimos de Renata se acalmaram - não em paz, mas voltando a forma mórbida que se encontrava. Deitou-o na cama, onde ficou sem reação alguma a não ser exalar que misturava álcool e suor, quase insuportável.

- Estou indo, então. E virou-se para a porta, deixando o corpo no seu sono vivo. Porém, num gesto rápido, o corpo estendeu a mão até a mão dela, segurando-s com força.
- Não me deixe sozinho.
- Eu não posso ficar, tenho um compromisso.
- Que compromisso, um encontro?
- Não, claro que não!
- O quê, então?
- Minha irmã, um compromisso com a minha irmã.
- Julia? Mas o que você tem com ela?
- Não é nada, volte a dormir, você vai ficar melhor?
- Como nada? Não é um encontro, mesmo?
- Não! Já disse que não! É só um coral!
- Coral? Julia canta num coral...
- Pronto?
- Me leva junto.
- O quê... não... não dá...
- Por quê?
- Você está bêbado e cheirando mal!
- Eu tomo um banho... por favor... não me deixa sozinho... me leva junto.

A verdade é que Renata sentia dó do homem que a agarrava pelo punho. Tentava encontrar algum jeito de deixá-lo ali e não precisar mais voltar e se preocupar com ele, mas nunca fora assim, irresponsável. Temia pelo que podia fazer ao estar sozinho e não queria que mais nada acrescentasse peso a sua consciência:

- Vá tomar banho, então... Não conseguia nem sequer falar agressivamente com ele, discutir, xingar, culpar... queria paz, só isso. O corpo cambaleante fez uma tentativa para levantar, fracassada. Renata logo o ajudou e endereçou ao banheiro. Ligou o chuveiro, testou a água e fez sinal para que entrasse. Antes que terminasse de tirar a camisa, Renata saiu do banheiro e fechou a porta. O quarto estava bagunçado... será que ele despediu a empregada? Não duvidaria. Para que não pensasse muito, ocupou-se em escolher a roupa para o ex-marido, deixando-a dobrada em cima da cama. Foi para a sala e arrumou o que podia, pois não demorou muito - pelo menos não tanto quanto ela esperava - e Marcos saiu pela porta do quarto de roupa trocada e barba feita. Parecia outro homem, mas a expressão do rosto era mesma: um misto de vergonha e tristeza.

***

Julia ansiava por aquele momento o dia todo. A manhã lhe frustrara de tédio e pensamentos negativos, mas agora a expectativa pela apresentação a distraía de todos os outros problemas. Quedou-se atrás do palco, esperando os outros chegarem para o aquecimento, mas ainda faltavam alguns minutos. Ensaiou um pouco sozinha, mas, preocupada em desgastar muito sua voz antes da cantata, cessou o canto e releu as partituras, que entendia razoavelmente. Chegou no seu solo. Leu as palavras e notas... tudo parecia decorado.

***

Mal percebera, contudo seus olhados estavam cada vez mais pesados. O som das pessoas conversando pareciam confortá-la e deslizou o corpo pela cadeira, apoiando a cabeça no encosto. Sentia alguma coisa nova, como se tivesse escapado da sua vida e mergulhado num outro mundo, de grande paz...

- Sofia? Uma voz leve perguntou.
- O que foi, pai? Mas, ao abrir os olhos, foi tirada daquele mundo tão pacífico e viu apenas o rosto de Gustavo, que tentava acordá-la do jeito mais cômodo possível, alertando-a do eminente começo da apresentação. Gustavo ficou um pouco desconcertado com a resposta, mas continuou:
- Acho que é um coral, uma cantata de Natal. Foi então que Sofia levantou os olhos e observou o local. As longas cadeiras de madeira, janelas compridas, um teto reto coma figura de uma cruz que se estendia até o fundo, acima do palco onde, ao fundo, encontrava-se uma série de largos degraus. Presumiu que seria onde o coral se colocaria quando entrasse. Nunca havia estado numa igreja antes, mas achava que seria diferente, com mais emblemas e pessoas vestidas formalmente, porém a diversidade de tipos de pessoas e vestimentas a espantou, comparando o ambiente ao de uma apresentação num clube - exceto pela cruz no teto. Pensou em sair, mas como não tinha a menor ideia de onde iria, não manifestou seu desejo.

A música começou, seguida pela entrada do coral. Passou os olhos pelos coristas e uma em especial a intrigou. Seu rosto era muito familiar... família... sua tia! Seus olhos se arregalaram e o corpo encolheu. Apesar de não querer ser descoberta, sentia grande alívio em ver alguém familiar e começou a reparar nos traços de sua tia em comum com de sua mãe.

- Está tudo bem com você? - se preocupou Gustavo ao ver o corpo encolhido de Sofia e como suas mãos se abraçavam firmemente. Ao encontrar o olhar do jovem preocupado, as mãos de Sofia relaxaram e descansaram no seu colo.
- Sim... e não disse mais nada, pois lembrou-se novamente no seu pai, perguntando se nada havia acontecido com ele - e sentindo um pouco de culpa por não ter dedicado muito tempo para pensar nele... afinal, era seu pai. Não se lembrava que sua tia cantava, nem sequer que frequentava uma igreja... talvez tenha procurado uma durante esse tempo que passou longe da família... talvez tenha procurado uma por esse tempo que passou longe da família, não sei... mas ela parece contente... pelo menos enquanto canta - cantar tem dessas coisas, nos deixa mais confortáveis e despreocupados, nos diverte.

- Sabe - disse Gustavo, interrompendo o pensamento de Sofia - eu não me sinto muito confortável aqui... Sofia buscou seu olhar, que parecia pedir socorro. Meu pai ia numa igreja... não vai mais... morreu. Estou só com minha madrasta agora e acho que ela só me aguenta por algum senso de responsabilidade, já que não sou seu filho, nem nada... além de não tratar ela muito bem - sentiu uma urgência em desculpar-se, mas a pessoa certa não estava ali... melhor dizendo, ele não estava com ela, ou com ninguém que conhecia... em plena noite de natal.
- Ele morreu? - desta vez foi Sofia quem interrompeu os pensamentos de Gustavo.
- É... câncer... foi questão de três meses desde o diagnóstico... fomos até num dos mais reconhecidos cirurgiões de São Paulo, mas nem ele conseguiu fazer nada... meu pai falava tanto que Deus tinha um plano para minha vida, para a vida dele, mas... ele morreu... será que o plano de Deus para ele seria morrer? Não faz sentindo... fez-se uma longa pausa, interrompida pelos aplausos relativos ao fim da primeira música. Sofia queria consolá-lo, mas não encontrava nenhuma resposta adequada... ela mesma sentiu uma semente de raiva instalando-se no seu peito, plantada pela indignação de Gustavo. Pensou em como sua vida descontrolou-se rapidamente... se existisse um Deus, ele devia ter feito alguma coisa, devia ter impedido... impedido que... apesar de procurar assiduamente, não encontrou verdadeiramente algo de ruim que lhe acontecera ultimamente que não tenha sido resultado de sua escolha, escolha de fugir e separar-se da sua família... não tinha como culpar Deus, como Gustavo podia... devia culpar apenas a si mesma.
- Meu pai - continuou Gustavo - apesar de toda dor... era diferente... era ele quem nos acalmava, eu e minha madrasta... parecia não se importar muito em morrer. Nem parecia que ele estava doente... ele falava que estava em paz. E calou-se Gustavo.

***

A apresentação do coral corria perfeitamente e pouco faltava para o solo de Júlia... na pausa entre as músicas tentou recordar rapidamente as palavras. Passou rapidamente por elas, como sempre passara. Percebera que nunca havia prestado real atenção no que cantaria. Tentou raciocinar, mas a próxima música já começara. Uma sensação que nunca antes a ocorrera começou a se fazer presente: cada letra que cantava, ao mesmo tempo martelava seu coração e penetrava suavemente. Tentou combater este sentimento estranho, mas lágrimas começavam a se ajuntar, deslizando gentilmente pela face. A garganta tremia, assim como sua voz, e um grande temor tomou conta de Júlia, com medo de que seu solo estaria arruinado pela sua fragilidade. Mas as palavras continuavam saindo de sua boca, e com elas mais e mais lágrimas banhavam seu rosto até que não via mais nada. Continuou cantando, até que a música findou-se... não queria levar a mão aos olhos, pensando que revelaria seu choro, então tentou recordar o caminho até posto de solista. Não se lembrava de mais nada que deveria cantar, mas aguardou pacientemente no seu lugar. Com um longo suspiro, o canto começou. A voz não saía tremida e deformada, como temia, mas extremamente comovente... cantava agora todas as palavras com o coração.

***

Soou em meio à noite azul, um hino divinal;
Jamais com tal beleza assim, ouviu algum mortal.
Do Céu ao mundo, graça e paz! Excelso dom gentil!
Dos anjos essa doce voz encheu o céu anil.

Enquanto os anjos inda estão cantando, com prazer,
Louvor por todo o céu sem fim ao mais sublime Ser,
Então, suave e meiga voz, descendo como um véu,
Cantou que já nasceu Jesus e uniu a Terra ao Céu.

Oh! quem nos dera sempre ouvir as vozes divinais!
Sentir a paz do Céu de luz, país dos imortais!
Louvar a Cristo, o Rei dos reis, com anjos em canção!
No lar possamos nós também cantar a salvação

Sofia ficou admirada com a voz de sua tia, que tocava-lhe profundamente, dando passagem para que a letra do hino fluísse por sua mente e a questionasse. Ao mesmo tempo que via a impossibilidade de acreditar no que estava sendo cantado, percebia o choro de sua tia, que parecia clamar ser tudo verdade. Ao fim da canção, todo o público se levantou para aplaudir. Sofia não queria se permitir pensar mais sobre a música - apesar de no seu íntimo desejar imensamente que a paz que fora cantada seja verdadeira. Chamou Gustavo, que o acompanhou, confuso. Mas ao sair pelas portas iluminadas, seu corpo congelou-se de medo e emoção: deparou-se com seus pais... juntos... Renata abraçou-a de maneira sufocante, como se temesse que ela escapasse pelos seus braços. Um alto grito ouviu-se ecoando pelas ruas... um grito de contentamento e alívio. Sofia não resistiu e também fechou seus braços ao redor de sua mãe, deleitando-se no calor do abraço. Quando abriu seus olhos, deparou-se com um homem totalmente diferente do que vira anteriormente, no mesmo dia. Os olhos marejados de seu pai fitavam-a com espanto, até que sua mão alcançou-a, acariciando seu rosto. Viu seu casaco vestindo-a e sorriu, imaginando que conseguira cuidar dela, mesmo estando longe. Os dois se aproximaram, como que querendo dizer algo. As palavras saíram no mesmo instante:

- Me desculpa... e os dois riram.

***

Quando Gustavo chegou em casa, Raquel, sua madrasta agarrou-o desesperadamente:

- Estava tão preocupada! Por que você não atendeu o celular? Gustavo lembrou-se de como caíra à tarde, e de como não vira mais seu celular desde então.
- Eu acho que perdi... desculpa... mesmo... e abraçou-a lentamente.
- Não importa, desde que você esteja bem. Quando se separaram, Gustavo viu uma mesa convidativa, posta para duas pessoas. Sentiu paz como nunca antes sentira... Quem sabe Deus realmente tivesse um plano para cada um... quem sabe?