31.3.10

Mestre dos Olhares

Quem diria que uma viagem de ônibus revelaria tantas coisas. Na verdade, só uma. Uma que vale por tantas e tantas outras. E tudo isso aconteceu por intermédio de uma pessoa. Talvez meia-pessoa fosse o mais adequado. Quem sabe até menos que meio.
Percebi-o enquanto me ocupava com os fones de ouvido. Viagens obrigatórias de ônibus não são lá tão divertidas, principalmente quando se está sozinho. Os fones enroscaram no boné - tão baixo, que me protegia de ter que olhar para as outras pessoas. Vendo a minha falta de destreza, o mesmo boné resolveu o problema: "Deixa que eu saio por uns instantinhos... afinal, assim também ganho um descanso. Sua cabeça não é tão confortável assim, sabe?". Ignorei este último comentário, mas aceitei o favor.
Assim que o boné pulou de seu confortável lugar, vi-o, olhando para mim. Nossos olhares persistiram, até que ele desviou levemente para cima, mas não como sinal de derrota, havia nele uma superioridade, era como se ele não precisasse de mim e eu necessitava do seu olhar. Eu era o inferior.
Para o meu sossego, ele atendeu ao meu clamor e voltou novamente seus olhos para os meus. Olhava curioso. Olhava bravo. Olhava choro. Não sabia direito como olhava, só que não fazia mais nada; não chorava, nem ria, não dava o menor sinal de satisfação (como era habilidoso no olhar, mesmo tão pequeno!).
Balancei aos poucos minha cabeça, acompanhando o ritmo da música que saía dos fones. Mal sabia eu que não se consegue ouvir nada de um fone que já se encontra posto - uma lei quase universal, ali ignorada. Até meu boné riu de mim. Não liguei. Continuei balançando a cabeça, na expectativa de que este gesto quase-louco sustentasse seu olhar. Não adiantou. Olhou para tantos outros lugares, e olhava com a admiração que faltava em mim, com espanto, como se tudo fosse novo, até as cores. Os dedos descobriam tudo que tocavam e valia tudo a pena.
De repente, ele saiu, me deixando sozinho.
Senti-me como ele, como um pequeno bebê. Não sei se ainda me recuperei do encanto.

28.3.10

23.3.10

Apenas má sorte, certo?

João Mansinho - apelido dado pelos colegas de classe, o qual João não se agradou muito, mas viu boa intenção - é um garoto honesto. Sempre vê o bem nas pessoas e se importa com elas. Esforçado e trabalhador, era um aluno dedicado, tirando ótimas notas, além de ajudar seus amigos de classe - os mesmos que o apelidaram - que, apesar de tentarem tanto, não entendiam o conteúdo das aulas e por isso João fazia junto deles (ou, por eles) as lições que valiam nota e passava a todos as respostas na prova. Depois da escola, trabalhava meio período numa padaria, ganhando um salário mínimo - salário que considerava justo, pela sua pouca idade e inadequação curricular, como dizia seu chefe. Como seus muitos colegas não tinham a mesma sorte de trabalhar, pagava-lhes seus lanches na hora do intervalo quando pediam - e pediam muito -, contraindo por algumas vezes, dívidas com o dono da cantina.
Esse mesmo João acabou de fazer dezoito anos e decidiu dirigir. Mas, como ele ainda não estava legalmente habilitado, procurou os procedimentos adequados para se regularizar como motorista brasileiro. Chegou na auto escola M..., muito famosa na cidade, e perguntou o que deveria fazer para tirar seu documento de habilitação para condutor. Porém, como a atendente estava falando ao celular, decidiu esperar cordialmente até que a conversa cessasse. Uma vez acabada a conversa, João fez sua pergunta, contudo foi interrompido por um jovem rapaz que chegou cumprimentando a atendente euforicamente. João achou justo ela o dar atenção, afinal, eles deviam ser velhos amigos para se cumprimentarem daquele jeito. Sua suposição praticamente foi confirmada depois de trinta minutos de conversa e risadas. Enfim, a atendente virou o rosto na direção de João Mansinho e disse, durante os intervalos de várias mascadas de chiclete:
- E você, quem é?
João se explicou e a gentil atendente apenas respondeu:
- Carro e moto?
João, que não tinha pensado anteriormente nesta questão, fez que sim. Depois de revirar alguns papéis, a moça escolheu alguns e mandou João assinar nos campos devidos. João até queria fazer algumas perguntas sobre o contrato, mas achou a auto escola M... muito confiável e não questionou nada.
O preço que posteriormente a gentil atendente lhe passou fez João coçar a cabeça e começar a pensar num outro horário que pudesse arranjar um outro trabalho para que pudesse pagar a auto escola, além de todas as suas outras obrigações. "Ainda bem que já acabei a escola e não tenho mais hora do intervalo", pensou João, mas logo reprimiu esse pensamento maldoso. O trabalho escolhido foi numa pizzaria que ficava aberta dia e noite, o que era ótimo, pois assim João podia trabalhar no período noturno, horário que não coincidia com seu outro emprego. O salário: o mesmo que ganhava na padaria - o que continuava sendo justo.
Por fazer cursinho de manhã e trabalhar o dia inteiro - sendo muito requisitado por seus chefes -, João teve algumas dificuldades para cumprir o procedimento burocrático da auto escola, demorando cerca de três meses para que se começassem as aulas teóricas no Centro de Formação de Condutores. Faria as aulas durante os fins de semana, durante um período de cinco semanas, porém como vez ou outra algum de seus chefes pedia-lhe que fizesse hora extra nos fins de semana, o processo alongou-se para oito semanas (e mais alguns bons reais por reposição de aula, os mesmos reais das horas extras).
Pelas mesmas dificuldades com o tempo, demorou para que João cumprisse as aulas práticas necessárias, sendo que três das vinte aulas não puderam ser realizadas porque o carro que ele usaria estava quebrado, sem contar as duas aulas que seu instrutor alegou estar doente e o fez levá-lo na sua casa durante a aula. Felizmente, o mal-estar durava pouco e até o fim da aula ele já voltava à saúde.
Após onze meses de sua inscrição - e já com dezenove anos -, João finalmente faria a prova prática! João alegrava-se com o fato, pois finalmente poderia largar um dos empregos assim que passasse, pois já começava a se sentir cansado.
Sentou-se no assento do motorista, cumprimentou o examinador, que respondeu com um doce resmungo, colocou o cinto, ajeitou o retrovisor e o espelho esquerdo - o espelho da direita já estava em posição satisfatória. Assim que ligou o carro, o examinador resmungou algo parecido com "Esqueceu de arrumar o espelho direito" e anotou um "menos um" no papel de João. Ele engoliu em seco e achou melhor não contestar. Mexeu um pouco no espelho da direita e se ajeitou novamente no volante. Engrenou a marcha e soltou o freio de mão. Quando olhou pelo retrovisor, havia apenas um carro a uma considerável distância, então João decidiu sair: deu a seta, virou o volante, acelerou e... "Tem um outro carro vindo. Menos um ponto". O resmungo repentino do examinador assustou João, que por reflexos pisou bruscamente no freio: "Parou no meio da rua. Reprovado. Próxima!". João, triste, desceu do carro, lamentando seus erros bobos, e deu lugar a outra jovem que estava com ele. Esta, mal sentou no banco do motorista e, considerando que João já acertara a posição dos espelhos, pisou energicamente no acelerador, fazendo o carro dar um salto para frente, quase esbarrando no carro que vinha na direção oposta. Com muita agilidade, a jovem desviava dos obstáculos e mudava a marcha, enquanto o carro pulava e seguia seu caminho por várias linhas tortas. O examinador, assustado e segurando-se - literalmente - no banco, disse - pela primeira vez em voz clara e audível - "Pode! ... Parar!... Aqui!". A jovem moça parou com destreza impressionante o carro e virou-se ao examinador:
- Como fui, fofinho?
Este, desconcertado pelo elogio, completou:
- Er... Aprovada, eu acho.
João voltou para casa decepcionado e frustrado. Disse para sua mãe que iria na auto escola no dia seguinte para marcar um novo exame. Chegando lá, perguntou quanto seria a reprova e obteve a seguinte resposta:
- No seu caso, querido, hoje faz um ano que você fez a sua inscrição, então você vai precisar fazer tudo de novo...
João respirou fundo e considerou. É, mais um ano de auto escola pela frente - e nem poderia largar um emprego.

Em homenagem ao feriado nacional do Dia-em-que-tirei-minha-carta.