24.11.10

sobre Asia Bibi

Há cerca de um ano e meio, uma mulher resolveu matar a sede de seus cinco filhos, dela e de seu marido no Paquistão. Providenciou água vinda do poço da vila onde morava, encheu o jarro normalmente usado para esse fim, que fica sempre ali ao lado e, sem saber, sentenciou-se à morte. Vista por outras mulheres da vila, foi acusada de profanar o jarro de uso comum pois era cristã num país muçulmano. Tais mulheres foram ao clérigo da região e acusaram Asia Bibi de blasfêmia ao profeta Maomé, crime passivo de pena de morte no país - que, por sinal, não necessita de testemunhas que confirmem o fato. Asia Bibi passou mais de um ano presa, sem saber se sua vida seria ou não tirada no dia seguinte.
Ela não foi a unica vítima - nem a última - a ser condenada à morte por razões religiosas. Tivemos recentemente no Irã o caso de Sakineh, que recebeu pena de morte por adultério, sendo que seu marido já se encontrava morto. O problema se deu pois culturalmente no país uma mulher não deixa de estar casada por ser viúva. E traição conjugal resulta em morte por apedrejamento (prática encontrada inclusive na Torá judaica e também no Antigo Testamento cristão).
Situações assim causam espanto na nossa cultura ocidental, que supostamente são construídas sobre a base dos direitos iguais a todos os humanos, não obstante sua classe, raça ou credo. Facilmente somos impelidos a nos indagar "como podem fazer decisões tão cruéis assim por tão pouca coisa?". Alguns mais radicais sugerem ações mais assertivas de seus governos a fim de estabelecer a verdadeira paz no mundo e findar a tirania. Mal percebemos e já estamos invadindo um novo Iraque.
Eu acredito no estatuto dos direitos humanos e sinto indignação diante de ocasiões como as citadas, afinal, como cristão, prezo pelo amor, respeito e vida, a partir das quais rejeito a possibilidade de julgar uma outra pessoa por seus erros, sabendo que também cometo meus próprios pecados, muitas vezes piores. Os julgamentos de Asia e Sakineh para mim transpiram injustiça, mas será que com isso ganho o direito de impor a minha própria justiça? Se acreditamos que as pessoas são intocáveis em suas escolhas - ou seja, que não podemos discutir seus gostos ou suas concepções de certo e errado -, não podemos isentar países como Paquistão e Irã dos mesmos direitos.
Mas então me diriam "é diferente! O certo ou errado das pessoas de meu país não ferem a ninguém, uma vez que não ferem nossa lei. Lá?! Lá sim, a lei é injusta e deixa passar marcas, mortes e rusgas!". Quanta inocência um pensamento assim. Só mostra como não conseguimos enxergar além de nossa própria cultura, como é quase impossível tirar os óculos com quais estamos desde pequenos. Não culpo ninguém por isso - eu mesmo tenho essa extrema dificuldade -, mas devemos ter a noção de que nem todos consideram como verdade as nossas verdades - afinal, os crimes de Asia e Sakineh são vistas, aos olhos de seus povos, como ofensa ao seu país, uma vez que estes decretem religiões oficiais. Por um lado, temos o direito de divulgar nossas verdades ao acreditarmos que essas trarão consigo o bem, mas por outro, os próprio estatuto dos direitos humanos não permite que imponhamos nossas crenças - sejam elas espirituais ou somente morais.
Como posso então buscar a justiça se não posso aplicá-la? Num cenário nacional - mais especificamente no Brasil - podemos aplicar as verdades da igualdade, uma vez que a mesma é apoiada pela constituição. Mais ainda, podemos e devemos impor as verdades da honestidade, do cuidado aos pobres, da luta pela prosperidade de todo o país. Num cenário internacional, as linhas são levemente apagadas, uma névoa cobre o chão impedindo-nos de ver nossos pés. Não significa que não devamos arriscar nossos passos, nos posicionar através de pressões políticas, abaixo-assinados, de até mesmo decisões mais radicais como sanções ou boicotes. Porém, sinceramente, não sei qual a linha que permite uma ação incisiva - ou se há essa linha. Não concordo com invasões como a dos EUA no Iraque, contudo ao mesmo tempo dói meu coração negar uma intervenção externa nas vilas africanas que castram suas meninas, por questões culturais.
Como cristão, também não creio em várias verdades, apenas uma - não raramente negada pela nossa cultura. O que significa que diariamente sou confrontado com situações que para mim são erradas, mas para grande maioria das pessoas não há problema. No entanto, como vivo num país laico - também supostamente -, não posso investir contra uma pessoa porque ela adulterou, ou humilhou alguém querido, pois tais coisas não vão contra a lei do meu país. O que está em minhas mãos é divulgar a minha verdade. Posicionar-me para que consigam ver onde piso em termos morais e espirituais. Meu Deus mandou-me que amasse a todos como a mim mesmo, depois de amá-lo acima de tudo. Contra essas coisas não há lei. Ao menos não uma presente no Supremo Tribunal de Justiça, mas que lei me protegerá de favorecer minha família ou meus princípios em detrimento do meu trabalho? Ou escolher educar sexualmente meus filhos para que sejam heterossexuais, sendo que vivo e estudo num ambiente onde isso pode ser considerado preconceito? O que digo é que todo dia sou obrigado a não impor minhas verdades, mesmo que eu possa apresentá-las (dentro de um determinado preço). Talvez assim também seja diante de países que acreditem que nosso mal é seu bem. Talvez não possamos impor, apenas nos posicionar e esperar, com o coração pulsante, que seus caminhos sejam alterados... Eu também tenho que conviver com amigos que tomam decisões ruins (para meus olhos e fé), sem forçá-los a mudar... apenas divulgando e esperando... É um lado cruel da realidade.

Um comentário:

  1. Tenho e impressão. Acho. Acredito. Penso que... qualquer pessoa com a mente aberta, racional, liberal e pensante; digo, quero dizer aqueles que você acha que te chamariam de preconceituoso por querer um filho hetero; ("sendo que vivo e estudo num ambiente onde isso pode ser considerado preconceito?")... Bom, enfim, eu vivo e estudo no mesmo ambiente e eu participo das discussões e ouço lados; e eu te afirmo que qualquer pessoa decente não vai, não pode e não deve te criticar por querer e educar um filho para ser hétero. O problema, a merda e a escrotidão está se você não permitir que seu filho escolha, o errado está em você colocar na cabeça do seu filho que ser gay é errado. Na real, minha opinião vai muito além, também para o lado religioso. Não acho que você tem que levar seu filho para um terreiro de umbanda, mas você teria a obrigação de mostrar que o mundo é amplo e diversificado e que ele pode sim ter escolhas e opiniões e idéias.

    Concordo com você que não é fácil. Concordo que não é possível opinar sobre o que deve ou não ser feito quando se trata de distintas e distantes culturas... mas o caso religioso, social, racial, sexual, regional e até étnico é sim da sua cultura e o mundo não vai melhorar enquanto a mentalidade que sustenta toda essa intolerância não for mudada. E isso eu acho que não vai acontecer tão cedo, nem tão perto.

    - Não estou tentando te convencer de nada. Só não podia ficar quieto ao ler você falar aquilo sobre o preconceito ao olhos dos outros.

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