20.4.11

O mito das portas

Acordei na penumbra e refiz minha rotina. Os dedos hábeis vagueavam na escuridão infinita, grossa e densa como uma nuvem de fumaça. Ouvia-se sempre os mesmos barulhos, de uns tantos semi-mortos (para os pessimistas) que iniciavam seus dias. Não sei o que faziam, nunca os via, sabia que estavam lá, no entanto. Criou-se esse hábito naturalmente, de não se interessar pelos afazeres de outros, provavelmente há alguns anos atrás, tanto que tirando o não-sei-quem de quem nasci, nunca entrei em contato direto com algum outro.

Algumas vezes, no entanto, uma criatura aparecia, tocando um som metálico e dizendo coisas, coisas, coisas:
- O novo nascer vem de dentro! Só de si! Só de si!
E de novo:
- E a vida é para si! De nada mais precisa!
Mas não respondia. Receava que roubasse minhas palavras. Não tinha muitas delas e esse homem passava de quando em quando recitando coisas todas novas. Talvez estivesse roubando-as de outros enquanto os insitava a falar. Afinal, eu não conseguia dizer coisas maiores, ele sempre diria algo de maior sentido, apagando os meus. E o que são palavras sem sentido?

Estive pensando, e talvez só não esquecemos que existem palavras por causa dos incessantes murmúrios que alguns de nós produzem e enchem por alguns instantes o ar – que logo abafa o som… Talvez não sejam murmúrios, mas palavras todas conexas e seguidas – imagine só tamanha beleza! – que o ar desfaz em poucos segundos. Quem sabe estão tentando contato! Mas nós, aqui, nem mexemos músculo em rumo algum e não se encontra ninguém porque ninguém ousa se mover… Um encontro! Como será? Como serão os outros? Iguais a mim? Poderão dizer-me como sou? Tenho apenas o tato nu e áspero de meu corpo, mas nunca consegui decifrar as formas que me foram dadas… Talvez encostando em outro possa ter uma ideia, uma melhor imagem. Quero conhecer minha formas! E assim, hei. Hoje largo meu instrumento, meu local e vou em busco de murmúrios! Deixaria meu sustento, meus pertences e de bom grado minhas obrigações e preocupações! Já não posso me encher mais dessas coisas vis! Eu vou… vou agora, isso, agora… eu vou… eu… [silêncio] mas quando sair, será que volto? Meus instrumentos nada sabem dizer, não haverá barulho que me guie de volta para cá… E se os tais murmúrios forem vãos? Sons debéis de bestas ferozes procurando alimento ou máquinas estranhas e abandonadas. Em nada adiantaria deixar tudo. Talvez eu mesmo me transforme em besta fútil à procura de alimento enquanto digo bobagens.

Demorei mais uns três sonos para me decidir. Uma vez que considerei a possibilidade de saber melhor de mim, sentir qualquer outro, as rotinas diárias começavam a me incomodar, a deixar de ser as mesmas. Até que um dia a perturbação tomou tamanha conta de mim que não podia mais concentrar as mãos, tremiam e em pouco tempo era eu inútil. Larguei e dei os primeiros passos. Pensei no que ficava para trás. Pensei-o mais afundo e andei mais ainda. Em pouco tempo já me sentia livre – deve ser a melhor sensação que existe, andar à toa. Ouvi, então, os murmúrios, que me direcionaram. Na mudança de direção, meu pé prendeu em algo e me senti pesado, indefeso, tonto e um vento correu pelo meu rosto, logo antes de sentir um impacto como nunca antes me percorrer de cima a baixo. Pensei de pronto como estava melhor parado, se nunca tivesse me mexido, não haveria sentido tanta dor – nem lembro a última vez que doí. Senti o chão assim pela primeira vez. Levantei-me e considerei que dificilmente acharia meu velho lugar novamente. Não tinha tantas opções: ou ficava, ou ia. Não só em movimento, mas fiquei em mim mesmo por todo o meu tempo, queria ir, ver se alguma coisa valia mais a pena.

O som nebuloso ecoava ainda à distância (ou pelo menos parecia, poderia estar diante de mim, mas o escuro o encobria). Era o único ponto em que poderia reclinar, sem outra direção, alguma qualquer pista. Sei que via-me andando, mesmo não mais acreditando na minha fé. Sei lá como funcionam essas coisas!

Após uns tantos passos que nem sei quantos, percebi algo curioso, um algo que se destacava do negro lugar. Um ponto tímido que atravessava a cortina de escuridão em sua forma toda disforme, como que dançando a um som até então desconhecido. Era tão diferente que gastei não sei quantas horas observando (podia ser nem uma sequer), até demorei a me dar conta que o som partia da mesma direção. Foi como se um rio todo quente descesse pelo meu corpo, ativando tudo que tinha em mim… meu ânimo se restaurou, sentia mesmo que caminhava rumo a algo, não mais uma possibilidade remota de um nada. Foram mais algumas horas e o ponto crescera um tanto, mas algo mais curioso aconteceu. Numa das pausas intermitentes daquele gemido inexpremível que seguia, ouvi um outro som tão curioso quanto logo ao lado. Um som que arranhava o ar, com estalos constantes, mas em diferentes intensidades. Desviei-me um pouco da minha rota (certificando que não perdia de vista aquele ponto). Andei um quê, até que senti algo embaixo roçar num outro corpo que se afastou instintivamente, parando aquele som arranhado.

Silêncio.

Aí percebi como seria genial criar um meio de testar o ambiente, qualquer som que pudesse ser reconhecido e respondido:
- Alô?
- Alô? – algo respondeu
- Preciso saber… é alguém como eu?
- Preciso saboré elguém com’eu?
- Que som você faz?
- Que shom vossefas?
E assim minhas palavras tentavam ser copiadas, como se um ser estudioso analisasse cada centímetro das minhas falas. Talvez não soubesse falar por si só, apenas reproduzir toscamente alguns sons. Quem sabe passou tanto tempo sendo ele mesmo que passou a copiar tudo, inclusive a si, sendo que qualquer coisa diferente não poderia ser absorvida… seu mundo era um retrato de algo que não conhecia. Não sabia de mais nada fora dele. E então…
- prrae trazheunciii ka’ham… quirtumiana balaey…
E eu:
- prai trajeuncil kãm? quirtumiana balei?
Mal me vi e também reproduzia aquilo que não sabia. Nunca imaginava que haveria de ter sons que faziam algum sentido, mas que eu não os entendia. E também conclui que o outro corpo devia ser igual a mim… afinal, temos os mesmos impulsos, as mesmas tendências, fora este calor familiar que nos cerca.
Pensei o impensável. Avancei em direção à respiração rouca perto de mim. Com meus primeiros passos, escutei outros, adiante, no mesmo caminho. A aproximação era lenta, e a cada passo meu, sabia que havia um passo dele, como uma fuga velada. Quando me dei conta que o tirava do lugar que possivelmente ficara durante toda a sua vida, parei, com medo de ter arruinado o eterno conforto de alguém. Dois momentos depois, um estrondo percorreu o escuro, com sons metálicos e tilintantes e depois um baque surdo. Não sabia se fugia eu ou se fugira ele, mas minhas dúvidas se dissolveram quando um gemido agudo e baixo se deu início, meio progressivamente. Não sei ao certo que tipo de feitiço poderia ser (minha mãe já falara sobre uns tipos que encantam outros… e do resto já não lembro), mas algo em mim doeu. Uma dor intensa que subia e fazia-me tremer tudo aquilo que não conheço. De repente, a dor transbordou pelo meu rosto e, novamente, tive as mesmas atitudes que meu irmão-de-raça: um som feio e inconstante saía desde o ventre até a boca, e já não tinha controle sobre mim mesmo.
Imaginei… não, absorvi toda a dor exalada no grito de meu irmão. Presumi que estava no chão, então me estiquei abaixo. Toquei. Estranho. Há tanto tempo que não tocava nada além de meus próprios instrumentos, e encontro o mesmo tecido áspero e duro e os gemidos não cessavam. Passeei pelo corpo desconhecido e me deparei com saliências frias e mais duras ainda. Mais uma vez, experimentei o que nunca tinha me passado antes: uma tristeza calada, surda, mas exposta. Como um passo em falso, um tropeço num momento de certeza. E me dei conta que aquele… ou aquilo poderia não ser como eu… não tinha a minha consistência macia e irregular, mas era reto, mesmo nas imperfeições, frio como eu nunca fui. Abandonei-o.

Foi quando percebi que perdi o ponto que seguia. Dei voltas e voltas (não sei quantas são possíveis dar) e caiu em mim que havia perdido tudo o que já tive: minhas coisas, meu lugar, minhas certezas, meu lugar, trabalho, intrumentos, lugar, descanso, paciência, lugar, etc. Só o grito incessante do bixo áspero às minhas costas. E aí, senti-me fechado, como se me encolhesse para me expandir vigorosamente, como se um ruído mudo bagunçasse meus pensamentos a ponto de não me concentrar em nada.

Uns tempos de caminhada incerta depois, a nuvem que cobria minha mente se dissipava e pude ouvir aquele primeiro (e às vezes maldito) som, que me deslocara pela primeira vez. Já não tinha para onde ir com certeza, então caí nos seus trilhos novamente. Por não sei quanto tempo. Fica difícil medi-lo sem qualquer referência constante (que seja conhecida, ao menos), mas sabemos que ele está lá, observando a todos, controlando seus movimentos num ritmo irônico. Finalmente, ouvi uma voz familiar, mas não tenho certeza se gostei. Vinha ele, com suas frases incômodas e seus sons metálicos, o ladrão de palavras.
- Decepção. Frustração. Raiva. São estes os nomes daquilo que sentes quando se sai de si mesmo!
- Não vale a pena! Não vale! É pequeno, é incerto.
e ainda:
- Se faz melhor quanto menos se olha ao lado!
Suas falas rebatiam em mim, nas minhas intenções fechadas. Medo meu, quando percebi que ele também percebeu. Parou. Sua voz ficou mais seca, aguda, afiada, cortava tuda à frente, até que parava em mim, como ameaça:
- E você? Que anda e nem sabe para onde. Que toca como se houvesse algo no ar. Que busca nada mais que solidão e desespero. E ainda se deixa parar em minha frente e recusar tudo em que viveu! Louco! Pisará em um buraco, em pisos falsos, em nada e cairá, lentamente, até que o corpo trema todo de medo e depois chegue a dor, ardendo em tudo, recobrando todo tipo de vacilo.
Não sei se viu que ainda não mudava minha posição, apesar de estar todo vacilante, mas agravou o tom… me assustei, pois senti que sabia ele tudo de mim:
- Lembra? Lembra de quando despertou outro ser? Estava ele em seus ritmos e sonos constantes e prazerosos. Você o desestabilizou! O fez tropeçar e quebrar tudo aquilo em que havia trabalhado! Além de sentir o que nunca antes experimentara: rugidos de dor, choro! Você! Foi você que causou seu declínio. E simplesmente foi embora…
Quando lembrei daqueles sons estranhos, do calor que em mim fazia, fiquei fraco como nunca. E caí, sem que nada me derrubasse. Ele estava certo, o ladrão de palavras estava… Fui eu que arruinei a vida daquele ser de palavras estranhas… Então, veio-me a mente a ideia mais maluca: Se aquele talvez-irmão dizia coisas totalmente diferentes das minhas, como que este ladrão só falava aquilo que eu entendia? Me dei conta do improvável… Mesmo sem trocar nunca palavras com ele, roubara minhas ideias! Dizia tudo aquilo que me causava medo e temor, criava correntes invisíveis, pesos silenciosos que não permitiam sequer me arrastar. Ao fundo (do que via, ou do meu pensamento, sei lá) apareceu novamente a luz. Me fez lembrar daquelas possibilidades, do porquê estava aqui e não mais ali, de como a vida nem vida direito era… era só repetição.

Ocorreu-me que depois de tempo o ladrão sumira. Levantei e retomei passos, aquele mesmo caminho de antes. O som que emitia a luz tornava-se mais intenso e decifrável. Era todo estranho (como tudo que vinha experimentando), como se as palavras (que não sei se sabia) eram todas juntas, mas dançavam no ar… Sentia-se subir e descer sem nem vê-las e aos poucos vi que meu corpo acompanhava seu ritmo. Quanto mais perto, mais reconhecia sua beleza, e mais tremia adentro

Foram muitos momentos. O feixe de luz era já uma grande foco, que chamaria a atenção de qualquer um que ali estivesse.

Cheguei em frente a ela. O som parou. Todo o resto também. Pensei que ela faria algo, que a escuridão mudaria, mas apenas uma grande expecativa pairava no ar, carregando todos os pensamentos. Senti-me atraído, por um breve instante, mais ainda não sabia o que fazer. Até que meu corpo se esticou sozinho e a tocou, mais fundo e cada vez mais… Até que tudo aquilo que conhecia estava mudado. A deprimente negritude cessara a ponto de haver tantas diversidades de coisas que nunca vira antes, mas traziam consigo um entusiasmo, uma vida incessante e explosiva. Era tudo um tanto claro, e quanto menos claro, mais coisas diferentes apareciam, mas podia-se… ver. Aquele som de outrora aparecia agora com outra forma. Eram conversas, que nunca ouvira antes, mas compreendia como se na minha própria fala:
- Esperei tanto, chamei tanto… Estou todo em cores por ter finalmente chegado. E veja como está mudado!
- Mudado?
- Era aquele homem pequeno e franzino, nunca de estatura, mas de pensamento. Ouviu meu chamado e recompôs forças para me buscar, mesmo que minha insistência teve de ser constante.
- Constante? Não era meu corpo sofrendo?
- Quem o trouxe até aqui em segurança? Segurou os ventos e abriu os obstáculos a sua frente que nem sequer sabia da existência? Quem deixou que sentisse tudo aquilo que precisava para compreender este momento? Quem deixou que vacilasse, mas no momento exato recuperou suas forças, fazendo-o ainda mais forte? E, principalmente, quem deixou que soubesse daquelas coisas que nunca vira ou ouvira antes, como a própria luz? Fui eu que o ensinei desde os primeiros momentos, e preparei para que hoje chegasse aqui, mas ainda não acabou.
Tudo o que ele falava desdobrava-me em mais partes, penetrando em cada parte. Fazia sentido na minha cabeça… e mesmo não entendendo tudo o que acontecera até aqui, tinhas algumas respostas e a sensação de poder conseguir mais.
- Mal chegou e esqueceu a razão por que veio. Não queria se ver? Olhe!
Tornei minha visão para mim mesmo, o máximo que conseguia. E admirei pela primeira vez minha própria forma. Todas ainda sem nome, mas cada um com seu desenho único, suas únicas funções. Todo o funcionamento dos meus dias tomava um sentido novo e me sentia quase completo.
- Não se engane, filho. Ainda não descobriu quem é de fato. A sua próxima opção lhe dirá como será. Poderá você se arriscar no desconhecido de um mundo com respostas – nem sempre as que gosta – e belezas diferentes… estará mais vulnerável por ver os estragos que uma queda pode ter em sua pele, mas conhecerá cada parte do corpo até que chegue o momento de se ver inteiro. Ou poderá voltar para onde estava antes, se achar suficiente, se achar desconfortável. Mas saiba… eu o tenho com rhwlerkj.
Entendia tudo, até aquela última palavra. Era tudo novo e nada podia fazer se não acreditar, mas se algum jeito sabia que o mais importa ainda não havia compreendido. Aquela palavra misteriosa ecoou dentro do meu corpo agora com forma, numa curiosidade desconfortável. Entendi o que ele dizia quando falou sobre um vulnerabilidade desconcertante.
- Não se preocupe. Apenas decifrará a palavra em que pensas quando conseguir me ver.
- E como faço isso?
- Caminhe pelo chão que está – que, por sinal, é terra, mas não qualquer uma… areia.
Cheguei até duas aberturas. Cada qual levava a um lugar.
- Uma delas o leva de volta, e a outra a mim. A escolha é sua… mas ambas as portas estão abertas. A grande leva ao mundo escuro. Seus ancestrais a abriram e a fizeram larga. A pequena o guia pelos meus caminhos. Ela estava trancada, mas foi aberta por um preço alto. Venho esperando e chamando todos os que me quiserem desde então.

Uma parte em mim foi tomada de medo. Percebi que nada seria como antes, mas num intenso e constante desconforto se tomasse a voz como certa. Tudo o que aprendera deveria ser reaprendido. E então me dei conta que nunca duvidara daquela voz e fazia dela toda a verdade. E se fosse simplesmente outro ladrão? Outro que queria-me acorrentado? A sensação de voltar ao que era antes trouxe um completo desânimo. Arriscaria, mesmo se minha vida fosse perdida por isso. Me arrastei pela entrada pequena, chegando no que a voz chamava de “verde”.
- Agora, aonde você está? Para que eu possa vê-lo? Não quer mais que eu veja? – eu clamei.
Veio, então, a luz… E finalmente percebi que este misterioso ser de misteriosas palavras não emitia uma luz, mas era a luz. Chegou, trazendo consigo uma peça que chamou de “espelho”. Levantou e disse:
- Eu quero. Veja!

e, num momento inédito, meus olhos se viram.