30.12.12

Ano novo

Vida nova é um tanto simples.
Simples - não fácil.

Algo aqui, acolá;
um aperto; olhar atento;
voz tenra e mão disposta.
Simples.

Não é, contudo -
palavras: vento.
Vida nova é um tanto simples.

Quem tem dois - reparta;
Daquele com poder - justiça;
Do que tem força - serviço.
É isso. Simples.

Vida nova é um tanto simples.
E, de certa forma, como o estribilho
só o é quando for repetido.

Lucas 2: 7-14.

28.11.12

palavra que mata

"...o falar dos tolos vem das muitas palavras" (Eclesiastes 5:3)

Antes algo sagrado, a palavra hoje perde seu gosto. Sim, eram sagradas essas mesmas letras que hoje espalhamos com tanta naturalidade. Não é para menos. As palavras têm uma função um tanto discreta, mas ao mesmo tempo crucial, na definição de nossa persona. Como uma cerca no pasto extenso, as palavras delimitam, consolidam, paralisam - e matam... Não há nada mais mortal que a palavra. À medida que gastamos mais palavras, morremos mais profundamente, nos esvaziamos. Se as palavras são, geralmente, significados peregrinos, proferi-las significa retirar de nós todo seu significado - deixá-lo livre. Libertamos a palavra - e nos aprisionamos.

Sabe-se de uma lenda há tempos perdida acerca de uma tribo ameríndia, que por aqui vivia muito antes de incas, xavantes, maias, astecas, tupis. Não se sabe seu nome porque não tinham, não podiam. Dar nome a alguém representava sua morte - do nomeado e um pouco do nomeador. Por sinal, pouco falavam. Cria-se que cada homem tinha vida equivalente a cem palavras - e as mulheres, cinquenta. Contavam fielmente cada palavra proferida. Utilizavam as palavras de forma tão sábia e bem colocada que estas adquiriam poderes de cura, destruição, bênção, maldição - e, em raras oportunidades, criação. Nenhum povo usou menos as palavras, mas também nenhum usou melhor. Quando a contagem de palavras atingia seu limite, realizava-se uma cerimônia ritualística: o homenageado era sacrificado após um longo ritual de purificação; não podia uma carcaça viver; não pode o corpo permanecer uma vez que se esgotaram as palavras. O corpo era queimado e, então, davam-lhe um nome; um nome sem letras, um nome composto pelas diversas variações de silêncio que eles conheciam tão bem. Só nomeavam os mortos. Sabiam...

"porque a letra mata e o espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6)

Nenhuma palavra pode ser desdita, revogada. Nem a vida que com ela vai. Morreremos todos, então, pois bem - não é nenhuma novidade. A graça está em saber morrer. A morte traz com suas asas negras e infames o medo; carrega no seu dorso a dor; transmitem com suas garras o sofrimento. O velho abutre é silencioso e paciente, atraído pelo cheiro dos corpos pútridos. A última coisa que leva consigo é a esperança. E esta não pode deixar-nos. Não precisa ser assim. Não precisa.

"Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor enquanto ainda éramos pecadores" (Romanos 5:8)

O preço da morte foi pago. O pássaro negro foi destituído de suas forças. No entanto... ele continua aí, à porta. Pairando. Esperando. Maquinando. A morte não abandonou nosso encalço e ainda persegue com violência. Ela está em cada palavra, em cada suspiro que exala de nossos corpos. Continuamos com uma certeza em vida: a certeza da morte. Mas a graça está em saber morrer. Não precisa ser assim. Não precisa. O velho abutre iniludível pode vir, mas não deve levar consigo a esperança...

"Pois sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado seja destruído, e não mais sejamos escravos do pecado; pois quem morreu, foi justificado do pecado. Ora, se morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos. Pois sabemos que, tendo sido ressuscitado dos mortos, Cristo não pode morrer outra vez: a morte não tem mais domínio sobre ele. Porque morrendo, ele morreu para o pecado uma vez por todas; mas vivendo, vive para Deus. Da mesma forma, considerem-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus." (Romanos 6:6-11)

A morte virá, inserida em cada palavra. A todo momento - morremos. A graça está em saber morrer. Afinal, é preciso morrer para ter vida. É necessário se esvaziar de restos para ser preenchido. A cada palavra me esvazio mais. A cada letra, sou despido do que é inútil. Quero que vá. Quero ser vazio, um grande nada. Assim e só assim serei completamente preenchido pela vida - vida plena. A morte vem, sim, e com ela traz a esperança. Mato-me todos os dias até que minha existência seja resumida à mais plena, imensurável e inabalável vida. A Graça ensina a morrer - para viver.

"Quem tentar conservar a sua vida a perderá, e quem perder a sua vida a preservará" (Lucas 17:33)

11.11.12

libertanatema

Odeio quando tentam prender-lhe;
detesto!

Semi homens vendados de negro
atrabelhoam pelo escurismo;
incomodados, cheios de cismo,
algemoam cada pé e dedo.

não!:
                des        (a)
                     prender

Deixa o véu e a porta fechada;
deixa no escuro.
Deixa o fermento ressoar
até (ex)trair o sentido.

Libertem-na
anátema
tema
ema
a

A linguagem não se prende.

8.10.12

abuso

atravessa o vácuo das palavras
o olho descuidado,
atraído pelo adjetivo.

mal sabe que assim mata
- o sujeito (?)
e predica pedregulhos.

a palavra, coitada,
é submetida à circunstância
e desmancha.

3.9.12

Logos


Eu sou o fogo.

Operar purificante,
línguas sedentas sobre o ferro
que endurece – não sem antes amolecer.
Impacto imperioso,
penoso,
que limpa.

Eu sou a água.

Não um rio, nem uma bica
- uma torrente.
Os limiares da terra e céu,
o engenho silencioso de toda gente.
Sou eu que mato
- para dar vida.

Eu sou a terra.

Os fundamentos de toda existência,
as torres brancas silenciosas
e o pó – sim.
Do pó retiro minha
imagem
e semelhança.

Eu sou o silêncio.

Incontrolável, inapreensível.
A mudez de toda gente;
e o barulho da alma.
Sou aquele que é achado
não na divina calma,
mas quando se está calado.

19.8.12

Palhaço!


Era o que respondia na idade de criança quando lhe perguntavam sobre sua futura carreira. Não acreditavam, seu pai e mãe, não levavam a sério. Errou por pouco. Era bancário. Mas, num belo sábado decidiu desobedecer. Vestiu suspensórios, um nariz vermelho, um rosto branco e algumas bolas coloridas.
Foi até o semáforo. Observou os carros passar. Vermelho. Foi até o meio da rua. Jogou as bolas ao ar, uma a uma. Uma a uma caíram – no chão. Passou a procurar as bolas, que se meteram debaixo dos carros. Quando estava para pegar a última: verde. Estava lá no meio da rua e ouvia as buzinas. Era atormentado por elas, cercado, inundado, surrado. Críticas. Caiu – desta vez ele. Observou os carros passar até parar e engatinhou por entre eles para a longínqua calçada. Talvez não precisassem de palhaços no semáforo.
Decidiu tentar novamente no domingo. Saiu para o maior centro social de seu tempo, o grande mercado globalizado diminuído em versão local, ainda com nome estrangeiro, shopping mall. Empurrou a porta, mal notado, mesmo com suas cores. Dirigiu-se à grande feira mundial de comidas. Jogou as bolas para o alto, uma a uma. Uma a uma caíram – no chão. Recolheu-as e jogou novamente. Uma caiu em sua mão, outra na outra, a terceira... Recolheu-as. A primeira – mão –, a segunda – mão –, a primeira – ar –, a terceira – mão –, a segunda – ar –, a primeira – alguém lhe esbarra e as bolas caem no chão. Quando recolheu as bolas pela terceira vez, olhou ao redor. Seus olhos não encontraram nenhum outro. Eram todos máquinas sem luz, programados para ouvir e ver apenas o que aprazia ao shopping. Foi para casa.
Obstinado, acordou na segunda-feira sem descanso. Seria palhaço de novo. Vestiu o suspensório, o nariz vermelho, o rosto branco e as bolas coloridas. Entrou no prédio, no elevador. Sexto andar, o escritório. Telefones e passos no carpete bege. Camisas brancas enfeitadas por gravatas cinzas. O mesmo som, repetido, repetido, repetido: “Banco dos sonhos, aguarde; Banco dos sonhos, aguarde; Banco dos sonhos, aguarde”. O palhaço olhou para as cores em sua mão. Elevador; último andar; escada e teto. O palhaço observou o movimento embaixo, carros em linha, na mesma direção – cinza, preto, branco, prata. Inclinou um pouco para frente e deixou o peso do corpo fazer o resto.
O mundo não quer saber de palhaços, apenas de cadáveres – e quanto se pagará por caixão e lápide, conjunto promocional.

26.4.12

vermelhando

O verme é uma coisa tão linda e insignificante;
tão diminuto;
ocupa um lugar ingrato - mas necessário
- na natureza
e não falha.

Ele come os mortos.
(e também os vivos, no tempo livre)

Ninguém o ama.
Pisam-lhe, sim, os desgostos;
lastram nele toda angústia;
culpam-no da existência patética,
enquanto remove o podre de todos.

Nunca matam.
(mas cuidam da morte)

Se são bons? Não sei...
não importa.
não mais.
Já me cuidam das entranhas
e me dão à terra.

5.4.12

Deus ama as aranhas

Há quem diga que as aranhas são, de todos os aracnídeos, artrópodes ou animais pequenos, de todos os campestres, urbanos ou desérticos, de todos os céfalos, bicéfalos ou acéfalos, bípedes, quadrúpedes ou polipedes, vegetarianos, carnívoros ou vampíricos entre até aqueles que fazem greve de fome, entre animais dos céus, colinas, rios, pântanos, vasos ou cantos de escada, entre inteligentes, "com dificuldades" ou desprovidos de toda e qualquer faculdade mental, entre todos os animais animados, tediosos ou irritantes, entre os seres que se multiplicam, reproduzem ou usam preservativos, entre os fantasiosos, míticos ou simplesmente irreais, machos, fêmeas, indecisos ou inexistentes, grandes, pequenos, gigantescos ou minúsculos, coloridos, retrô ou degra, maléficos, bondosos, culpados com ou sem dolo e até os inocentes - se existirem -, enfim, de todos os seres contidos ou não no Reino Animal, os mais asquerosos.

Mas por quê? Quem diria tamanha estupidez? Quem poluiria o grandioso mar de ideias do ar com tamanha insolência? Ou ainda, quem seria tão preconceituoso a este ponto?

Digam o que quiserem! Mas as aranhas são sim, de todos os aracnídeos, artrópodes ou animais pequenos, etc., etc., etc. os mais asqueroso. Diria até mais! - os mais repugnantes - oh, céus! Prendam-no!

Um momento, um momento... tenho provas - impossível! - não, tenho mesmo provas!
Vejam só, estes bichos asquerosos são mais do que desenhados para assim serem. Suas pernas, como todo artrópode, são divididas em uma série de articulações, mas retorcidas a um ponto de extremo incômodo. Partem do corpo para cima, invariavelmente, num ângulo invejável, mas caem bruscamente, desrespeitando toda lei física, estética, matemática e filosófica antes conhecida. Dobram-se mais, e contorcem, se contorcem até mergulhar oito pontas peludas no solo. Alguém já viu algum outro artrópode tão inconveniente? - as formigas... - não, nem continue! Poupo-lhe de usar tal argumento antes que se envergonhe. Olhe só para as formigas! Sim, suas pernas também tem articulações (como bem disse anteriormente, se tivesse prestado atenção), mas não se trata especificamente delas, mas da forma com que se comportam. As formigas, insetos tão admiráveis e dignos de respeito (não acredito que iria mesmo fazer tal comparação), ainda nos agraciam com algumas curvas. E se, porventura, tiverem no mínimo um ângulo reto, é porque lhes são permitidas devido ao seu intenso trabalho diário, coitadas. Voltando... agora ao céfalo-tórax. Que construção mais horrenda! Nem mesmo os monstros mais temerosos de Homero eram audaciosos a este ponto, sempre tiveram ao menos uma cabeça com uma mínima separação entre esta e o corpo. Mas imagine só, ou melhor, não imagine, veja como é intolerante esta forma, que junta tudo em um só, com seus inúmeros pares de olhos (para quê tantos?) e suas presas infalíveis. Sim, estas doloridas castigadoras, penetrando corpos, independente de seu tamanho, capazes de liquefazer todo o interior de uma pobre vítima e, sem respeito algum por sua alma, sugá-la! Sugá-la! E então, por fim, vem aquele abdômen, uma fábrica incessante de armadilhas e enganações, com insolúvel proporção, dando-nos a constante sensação de desequilíbrio. Este bicho, digo (e antes tenho de dizer que estou admirado pela falta de interrupções), foi todo feito para ser inadequado.

No entanto, sei, virão seus defensores. E direi que, em sua maioria (com exceção do pobre homem que me ocupou com questões ignorantes anteriormente), estão certos. As aranhas tem uma riqueza de diversidade nunca vista em nenhum outro animal - e, quiçá, nunca mais existirá animal tão diverso - sim, tenho de concordar. Suas cores são inacabáveis, a variedade de suas espécies impossíveis de serem apreendidas, seus tamanhos todos distintos, com proporções inigualáveis. A sua própria anatomia nos mostra uma riqueza de ângulos e formas, retas e curvas e nos leva sempre a pensar o inesperado. A engenhosidade de suas artimanhas é invejável, na tecelagem daquela pegajosa e trapaceira teia, mais forte do que aço e mais maleável que algodão. Os desenhos que nelas encontramos formam as mais curiosas figuras e sua caça inteligente, sem sair do lugar, nos faz repensar na eficácia de nossos métodos - sabia que iria mudar de ideia! - arre! Mudar de ideia? Só porque sei reconhecer as qualidades de meu objeto de crítica não a anula por completo, muito pelo contrário, mostra a imparcialidade de minhas decisões e resoluções, prova que conheço o meu alvo e fundamenta minhas críticas a seus defeitos. Concluindo, confirmo sim: as aranhas são, de todos os aracnídeos, artrópodes ou animais pequenos, etc., etc., etc., os mais asquerosos e repugnantes.

Existe, entretanto, uma terceira corrente que diria: "de fato, as aranhas tem todo o design para serem criaturas horripilantes e inadequadas, e parece que se aproveitam disso. Não seriam elas, então, belas, no sentido de que cumprem seu papel de inadequação, sendo justamente tanto inadequadas quanto possível?" Admito que essa pergunta me intriga, pois levaria a seguinte: "Por que Deus projetou criaturas tão horrendas, sabendo que assim seriam? Será que ele as deu a função de serem exatamente horripilantes?". Confesso que não a sei responder, a pergunta. Mas sou levado a pensar: tendo Deus feito todas as coisas, por conseguinte foi ele que fez todas as aranhas. Gastou um pensamento particular em cada espécie, brincou com as cores, ajeitou as patinhas, o número de olhos, os desenhos e tatuagens diversos, adaptou-as a - quase - todo tipo de ambiente, deu a cada uma delas uma forma diferente de trançar teias, de atacar suas presas, de lidar com o instinto da sobrevivência. Enfim, sou levado a crer que fazer aranhas era algo de seu gosto, que gastava horas e horas imaginando uma forma outra de criá-las, até povoar toda a Terra com todo tipo de espécie. Ora, uma criatura assim espalhada por todo o globo, tão diversificada, na qual ele deu tamanha atenção particular... diria, por fim, que Deus ama as aranhas... talvez até a ponto de morrer por elas.